terça-feira, 24 de agosto de 2010

Aquele banco de jardim, sempre o mesmo!



Dois velhos encontram-se num banco de jardim, sempre o mesmo! Apanham o calor dos últimos raios de sol, vivem aplicadamente aqueles momentos que sabem que não se vão repetir tantas vezes quantas gostariam. Conversam devagar. Já não se conversa intensamente como dantes... Há já certas incongruências: no meio duma frase, param, já algo se perdeu! Já saltaram para outro tema, para outro tempo: o tempo em que não pensavam se teriam tempo. E bailam farrapos de passado que instalam por momentos um sorriso sereno nos seus olhos vincados. E visitam-nos esgares de futuro que os fazem desejar ir lá, ainda ter tempo para lá ir...

Há silêncios, muitos silêncios que perderam significado... significam cansaço!

Fazem balanços mentais. O que valeu a pena, as incertezas, os prazeres que amargaram, os desejos que já adormeceram...

Mas o mais triste é pensar nos que já partiram. Tantos partiram! Tantos! Tantas vidas que cruzaram com as suas. Outras tantas que seguiram paralelas! Tantas que já nem se conseguem lembrar de todas!

O que mais dói agora é a solidão. Por isso se encontram todos os dias, no mesmo banco! Por isso procuram ansiosamente o olhar do outro, o aperto de mão, as palavras que apaziguam, a partilha que aquece o coração, que o faz bater um nadinha mais depressa!

Com o passar do tempo, o que começou por ser uma conversa de circunstância entre desconhecidos, foi crescendo, ganhando terreno no outro, passando a confidência, a partilha. Ganharam o hábito um do outro, e foi nascendo e crescendo e tomando conta deles aquela amizade a que se agarram porque precisam tanto de se agarrar a alguém para não caírem!

É bom abrir os olhos todas as manhãs e saber que é preciso seguir todas as rotinas até ao banco do jardim. O outro está à espera! Como estará hoje? É alguém que os espera, que partilha, alguém que os obriga a arranjar-se todos os dias, alguém que merece aquele sorriso que já vai desenhado pelo caminho fora e que leva um sorriso ainda mais bem desenhado em troca. Que bom ainda existir aquele amigo!

Enquanto esse amigo lá estiver, o caminho será sempre percorrido, terá sempre um fim: aquele maravilhoso banco de jardim, sempre o mesmo!

As velas ardem até ao fim - Sándor Márai





Sándor Márai é um mestre de técnica narrativa neste belo romance. Alguns consideram-no uma obra-prima da literatura húngara do sec. XX. É uma obra muito bem escrita, densa, complexa, emotiva, com uma escrita muito intimista que me deu muito bons momentos.

É um tratado e uma reflexão sobre a amizade que, tal como uma vela, arde até ao fim. O título é muito sugestivo, chama-nos e atrai-nos. Que bela escolha!

Finalmente, ao fim de 41 anos de separação devido à fuga de um deles, dois amigos reencontram-se. Depois de sobreviverem ao colapso dos valores que defenderam e ao desmoronar do seu próprio mundo e à morte de Krisztina que foi o centro de tudo. Foram 41 anos em que um segredo ensombrou as suas vidas, foi guardado, repensado, remoído, triturado, analisado até à exaustão. Encontram-se e têm de enfrentar, analisar e ver todo o passado à luz da verdade. É muito interessante que toda a reconstituição do passado seja feita pelo lado do triângulo amoroso que menos pode ter certezas sobre o que se passou: o marido. E só a velhice lhe pode ter trazido a serenidade e a sabedoria para a análise tão completa e profunda e o confronto tão compreensivo com o amigo que o traíu.

"A amizade deles era tão séria e silenciosa, como todos os grandes sentimentos que duram uma vida inteira. E, como todos os grandes sentimentos, continha também um certo pudor e sentimento de culpa. Uma pessoa não pode apropriar-se impunemente da outra, separando-a dos restantes."

"Sobreviver a alguém a quem amámos tanto que teríamos sido capazes de matar por ela, sobreviver a alguém a quem estávamos ligados de tal maneira que quase morremos por isso, é um dos crimes mais misteriosos e inqualificáveis da vida."

"Éramos amigos e não há nada na vida que possa compensar uma amizade."

"O Eros da amizade não precisa do corpo... longe disso, incomoda mais do que excita. Eros está no fundo de todos os afectos, de todas as relações humanas."

É um livro muito belo e profundo. Faz diferença não o ler...


terça-feira, 17 de agosto de 2010

O Caracol e a "Garden Party"





Sou um caracol e a minha divisa é “Devagar se vai ao longe”. Levo a vida muito serenamente: tacteio tudo, sinto todos os odores, nunca me apresso. Dou tempo ao tempo.

Talvez por isso o Homem adoptou-me como símbolo da “Slow Food”: é o retorno às refeições saboreadas lentamente, confeccionadas com tempo e cuidado, enfeitadas com conversas gostosas, com produtos tradicionais. O Homem começa a perceber que tantas correrias e stress não o levam longe, ou levam mais longe mas com menos qualidade de vida.

O prazer precisa de tempo para ser apreciado, sem pressas. Precisa de disponibilidade, de relaxe, de esquecer o relógio, de entrega sem tempo contado.

“Slow and easy”: o Homem tem de perceber que não é uma máquina, precisa de humanizar o seu ritmo de vida. Se me observar e seguir o meu lema, pode aprender muito…

As crianças brincam “Caracol, caracol, põe os corninhos ao sol!” Nem sabem como isso é o prazer puro: saborear muito lentamente uma couve tenrinha com o sol a aquecer o meu corpinho e a minha concha e o bem-estar a tomar conta de mim. Tão docemente! É o prazer absoluto!

Melhor que isso é namorar com outro caracol: sou hermafrodita, mas acasalo 4 vezes por ano, para que me reproduza. Portanto, essas 4 vezes são muito desejadas. Fazemos muitos miminhos, sinto o seu odor, o seu gosto, prolongamos esse prazer devagar, devagarinho.

Deus dos caracóis: obrigado por me teres dado este dom que me permite tão bem apreciar todas as pequenas coisas do meu pequeno mundo.

O Homem adora-me e, como de costume, tudo o que adora, mata e devora. Eu e os meus semelhantes morremos muitas vezes a ferver em panelões: é o horror! Parece que somos deliciosos! Mas alguns comem-nos tão sofregamente que, mais uma vez, não desfrutam da melhor forma!

Mas há seres humanos que não nos molestam, antes pelo contrário, enaltecem as nossas qualidades na sua escrita, pintam-nos, fazem esculturas…

Até o Sr. Rafael Bordalo Pinheiro criou moldes que nos reproduzem em bela cerâmica. E agora estamos numa “Garden Party” no Jardim Bordalo Pinheiro no Museu da Cidade de Lisboa. Excelente ideia da Catarina Portas e projecto da Joana Vasconcelos.

Nestes dias de Verão lá estamos todos a celebrar a vida e a animar a natureza!



sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Sexta feira, dia 13, Nock, nock, é o azar!



-Nock, nock...

Abri sem sequer me preocupar em ver quem era.
E lá estava aquela figura, um esqueleto, com um capuz, parecia um esqueleto vaidoso.
Não dava para acreditar. Detesto esqueletos, não acredito no  azar. Não era nada fácil!

- Olá viva. Como estás? Apresento-me: eu sou o Azar! Tenho o maior dos prazeres em te visitar!
- Azaruxo, eu não acredito em ti nem um bocadinho e não tenho o menor dos prazeres nesta cena...
- Deve ser por isso que não me mandas entrar ou é apenas acanhamento?
- Claro que não entras, em minha casa não, só mesmo por cima do meu esqueleto, o que, por agora, não é o caso. Azar teu!
- Não penses que é por seres mal educada e não me convidares para entrar que eu não vou ensombrar a tua vida!
- Ensombra, ensombra, com este calor, a tua sombra até que pode dar jeito!
- Deves achar que tens piada e até fazes trocadilhos... Mantém esse sentido de humor quando eu começar a lançar o meu azarado feitiço sobre ti!
- É melhor mandares esse tal feitiço, que já me estás a fazer perder muito do meu precioso tempo. E eu tenho a sorte  à minha espera à janela!
- Não fales nessa mulher, que me dá azar!
- Pois é uma sorte que a sorte te dê azar. A mim a sorte só me dá coisas boas: sorte, alegria, amor, beleza, amizade, boa disposição, luz...
Curioso: com toda esta carga positiva o azar desintegrou-se num monte de pó. Fui à cozinha, trouxe a vassoura, varri o pó, apanhei com a pá e deitei no lixo. Que trabalho o azar dá!

Fechei a porta e fui tagarelar com a sorte à janela.


segunda-feira, 9 de agosto de 2010

As fases da Lua






Ela é uma Lua Cheia de fases, de poses, de brincadeiras, de facetas. Esta gata é uma caixinha de surpresas, é um animal delicioso na conjugação entre a independência e a dependência. Pode ser arisca e meiguinha no segundo seguinte. Pode ser deliciosamente felina e assustadoramente canina. É, acima de tudo, encantadora e sempre à coca do que se passa: uma verdadeira cusca! Estou rendida: ela sabe seduzir!


segunda-feira, 2 de agosto de 2010

O segredo dos seus olhos




Quem tinha visto o filme recomendava-o, também sabia que tinha ganho o óscar para o melhor filme estrangeiro, mas não esperava tanto! Como se costuma dizer, encheu-me as medidas!
Um filme argentino, de pequeno orçamento e que resulta nesta delícia!

Embora seja um thriller, para mim é essencialmente um filme sobre o amor e sobre os paralelos entre duas histórias de amor. É feito de muitas camadas, que se vão revelando e mostrando o que estava por trás. Tudo está interligado, preciso é descobrir o fio que conduz, dá voltas e voltas...

Fala de um crime horrendo, da justiça que se procura e dificilmente se encontra, da vingança que se serve fria, da corrupção inerente à época da última ditadura argentina. Fala do amor e daquilo que nunca mudamos: a nossa paixão.

Neste thriller, as perseguições à moda de Hollywood são substituídas por uma entrada aérea num superlotado estádio de football, em que somos esmagados por esse ambiente único. Depois é percorrer os labirintícos corredores e casas de banho numa corrida alucinante.  O ritmo da narrrativa é envolvente, os diálogos e os silêncios inteligentemente doseados. Os protagonistas são brilhantes e a caracterização do seu envelhecimento através dos 25 anos que o filme cobre é perfeita. O segredo dos seus olhos, o significado dos olhares estão sempre a espreitar-nos, há que seguir a sua beleza, a poesia que encerram, as mensagens que transmitem.

E o final é soberbo, tinha de ser aquele para que tudo fosse perfeito.

Juan José Campanella é um nome a reter.

E este filme não passa por nós, fica em nós. Apaixonamo-nos pelo Amor, com aquela beleza, aquela autenticidade.