segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Porta para um mundo já aberto


Escrevo sobre portas. Entradas e saídas. E entretantos.

A porta abre-se para trás, leva-me numa viagem através do tempo, mas recuando.

A foto daquela bebé de grandes olhos que vão comer a vida olha-me escuramente.

A porta está suspensa. Só existe para que eu saiba. Para me lembrar que estou noutro patamar. Numa viagem de aventuras e desventuras, sem destino. Pela memória. Em direcção a mim.

E aquela miúda morena vestida de anjinho, com asas e tudo. É isso: pureza para se perder.

Sentimentos trazidos por verbos, advérbios indicando estados, adjectivação de emoções, substantivos comuns conduzem-me ao mais fundo do meu ser.

A porta abre-se para um mundo já aberto…

Aqueles olhos de uma adolescente receosa já cresceram em dor.

E a porta leva-me para aquele tempo perdido em tempos.

A porta da liberdade



A porta abre-se  para trás, leva-me numa viagem através do tempo, mas recuando.

Curioso, a porta abre-se para o mundo a abrir, leva-me para aquele tempo sem tempo, aquela praia quase deserta, onde acampava nos verdes anos. Lá vou eu pela sensação de liberdade total, sem regras, sem relógios, sem barreiras. Uma tenda, uma amiga, a alma a transbordar de alegria, de juventude, de sonhos por cumprir. Qualquer loucura era bem-vinda. Só tinha de ir contra o estabelecido, contra as regras, contra o cheiro a bafio. Tudo tinha piada, tudo provocava felicidade, o riso era uma constante, solto, bonito, branco. A praia era dos pescadores e nossa também. Porque também pescávamos a liberdade e o prazer de viver um tempo tão único!

E a porta não está ligada a nada, é suspensa, só existe para eu saber que posso passar por ela para um mundo muito melhor.

Não é uma porta vulgar, não se parece com qualquer porta, cheira a mar, a aventura, a azul. É a porta de liberdade. Não pode fechar, só pode abrir. Abre horizontes…

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

O medo é negro


O carro avariou no meio daquela serra sem fim, onde não se via vivalma, onde tudo era escuro. Lá no alto brilhava aquela lua cheia, enorme, magnífica e que tornava a natureza à sua volta mais fantasmagórica, mais sinistra. E ela tinha de procurar ajuda algures onde houvesse algum ser humano disposto a dar uma mãozinha. Mas no meio daquela negrura, daquele silêncio medonho, aonde iria desencantar uma povoação, a que distância, como lá chegaria e quando?

“Coragem, mulher, quando não há escolha, está escolhido. As perguntas apenas complicam, calma, o escuro não mata e o silêncio apenas dói e mói e rói.” Como diabo conseguia brincar com as palavras no meio de semelhante situação! Eram os nervos…

Lá começou a avançar no meio de todo aquele emaranhado de folhas, arbustos, árvores, figuras de todos os tamanhos e feitios que evocavam inimagináveis pesadelos que nunca tivera a dormir, mas estava agora desperta até demais a vivê-los ao vivo.

O sangue pulsava com força, sentia o coração a bater-lhe nas têmporas e a cabeça latejava ao ritmo do coração, aumentando com a velocidade dos seus passos que aceleravam descontroladamente a fugir do medo, mas o medo corria sempre mais e apanhava-a. O restolhar dos seus passos trazia animais bizarros, figuras do além, almas penadas que à falta de outro passatempo a perseguiam naquela noite. Tudo era escuro, mas com um determinado brilho próprio, às vezes branco intenso reflexo daquela lua, única testemunha acesa do seu drama.

Gostaria de voltar a dias coloridos do seu passado, confortáveis, quentes, por oposição a esta noite fria, medonha e negra. Negro é também como vê o seu futuro imediato e negra é como se sente por dentro. Decididamente o medo é negro, por oposição à paixão tão vermelha!

E lá vai ela de rajada, qual furacão através daquele pesadelo ensurdecedoramente alucinante e brilhantemente escuro. Dispara pelo desconhecido fora, sente uma solidão alucinada no meio duma noite preta, em que a natureza se animou para a aniquilar e em que a lua se encheu para testemunhar o seu terror.

De repente, esfregou os olhos, estava a delirar ou era mesmo uma pequena aldeia iluminada com luzes a valer e com seres vivos, talvez a dormir, mas vivos e reais? Estava salva!

Viver é um risco permanente, mas o maior é o risco final, aquele que nos risca de vez da possibilidade de arriscar. Vivam os riscos e as vidas riscadas, às riscas, de risco em risco. Vivam!



segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Ofélia



“Ofelinha, minha linda, estou a chegar. Não caibo em mim de contente. E tu, minha queridinha, não me olhes com esses olhos de carneiro mal morto! Eu bem sei como ficas feliz com a chegada do teu mais que tudo, do teu queriduxo. Chega para lá, deixa-me passar. Estás a provocar-me, minha doida…

Trago-te o pitéu que tu mais gostas e não é por ser o dia dos namorados, tu mereces, hoje e sempre. Deves estar com fome, minha coisinha mais fofa. Mas ainda bem porque hoje preparei-te o teu jantar preferido, sua sortuda!

Fartei-me de palmilhar, o que eu sofri para aqui chegar, estava a ver que não ia chegar a tempo para poder passar um bocado contigo. Sento-me aqui ao teu lado, olho-te, vejo como te delicias a comer e sinto-me bem, sou um homem feliz…

Tu estás bonita, rapariga!

Tenho pena, mas vou ter de te deixar, a família espera-me. Até amanhã, minha beleza”.

E assim o Sr. Januário fechou a porta do pequeno curral e deixou a sua vaca Ofélia pensativa a terminar a sua refeição.



domingo, 6 de fevereiro de 2011

Aquela velha senhora


Aquela velha senhora trémula, sentada naquela sala confortável com uma mantinha de lã vermelha nos joelhos, olhava o horizonte alaranjado pelos últimos raios do fraco sol de Setembro, que lhe trouxe de volta outro Setembro. Mais uma de tantas vezes segurou entre os dedos aquele frasco vermelho sangue sem coragem de o abrir. Era só mais uma vez… mas não, era chegado o momento, era hoje, era agora: com uma antiga emoção retirou aquela tampa de prata velha do frasco vermelho, que emitia pequenos raios reflectidos do sol lá de fora, ou seria da luz daquele passado que encerrava?

O seu coração galopava, o vermelho da manta subiu para o seu rosto e o aveludado vermelho húmido daqueles dias e daquelas noites encheu esta confortável sala de paixão. O cheiro a jasmim misturado com o cheiro daqueles corpos que tanto se amaram tomou conta do ambiente, a sala ganhou vida. Tudo era real, tudo se animou, ela tornou-se ágil e fogosa. O sabor a amoras remoçou a sua boca. Ele estava ali com ela outra vez. Estava de volta, não podia deixar de ser. Levantou-se com o entusiasmo que ele sempre lhe provocava e pôs a música deles a tocar como tantas vezes pusera… Ele enlaçou-a e dançaram com a paixão de sempre, tudo voltou a ser. A sala ganhou calor e a vida voltou a ter o antigo sabor e ela sentiu a vida a mimá-la. Os sonhos voltaram a construir-se com a mesma certeza de virem a ser reais algures no futuro. Tudo valia a pena. Eles estavam juntos, nada lhes podia acontecer, eram fortes, eram eternos como o seu amor. E mais uma vez foram pela praia fora, passeando, correndo, beijando-se. O mar, sempre o mar a inspirá-los, a renová-los.

Um barulho na rua chama-a de volta aquela sala fria e real. Ela já é outra mulher, ele já não está ali, mas sim está na mesma por ali, algures dentro dela. É apenas uma mulher mais madura, que eufemismo! Mas ainda sente tanta juventude, ainda vibra tanto! Aquele corpo é apenas uma capa velha que cobre um tesouro. Tem tanto amor guardado para saborear quando abre os seus frasquinhos! É bom ter vivido tão intensamente, assim pode visitar o seu mundo privado quantas vezes quiser e pode colorir estes dias cinzentos e aquecer estas noites frias…

Se não fosse ter guardado tantos bons momentos em frascos que abre nestas noites, como poderia ter tanta inspiração para o romance que anda a escrever? Ainda bem que a memória não a tem traído, é selectiva e esqueceu as partes mais desagradáveis.

Volta a fechar aquele belo e gostoso frasco vermelho com a sua elegante tampa de prata velha. Agarra no bloco e recomeça a escrever enquanto as ideias saltitam. O diálogo entre ela e o papel é intenso. Extravasa o que já não pode guardar lá dentro, o que tem de libertar, de partilhar. As palavras encadeiam-se, agrupam-se, fazem fila, mudam de lugar, aproximam-se das amigas que lhes dão mais sentido, que as completam, que as ajudam a criar ideias, um poema em prosa. A caneta tem dificuldade em seguir aqueles pensamentos galopantes.

Ninguém diria como são animadas e produtivas as noites daquela velha senhora!


terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Cheia


Oito horas desta soberba manhã e ouvi o chamamento: a extensa praia vazia chamava por alguém, alguém que a enchesse, que a gozasse em toda a sua pureza. E esse alguém era eu, que honra!

Ela oferecia-me a sua beleza nua e crua, virgem daqueles estragos que só o bicho homem consegue infligir na natureza, sob os mais nobres pretextos.

Ela abria-se para mim e eu percorria-a com todo o vagar, com toda a paixão da primeira vez. Entrei pelo seu mar adentro e deixei-me percorrer por aquele prazer sensual, aquela massagem que só o mar nos sabe fazer, enchendo de mimos os recantos pressentidos mas ainda não explorados dos meus sentidos.

Toda aquela beleza era um forte apelo à criatividade, uma tela a pedir “pinta-me”, as palavras a saltitar, a reunirem-se em frases, a construírem capítulos, a tecerem uma trama, a criarem um romance na minha cabeça.

E eu com o dia à minha frente para gozar em pleno aquela beleza, renascida e refrescada por dentro e por fora.

Mergulhada no azul, boiando no azul, olhava aquele jogo de espelhos azul e sentia-me lambida de azul. Toda aquela sinfonia azul era uma perfeição, ali nada desafinava.

Entrei numa praia vazia e saí dela cheia e bêbeda de azul. Tudo era possível. A felicidade era mesmo um estado de espírito, o meu, inspirado naquele pedaço de paraíso.