sexta-feira, 26 de novembro de 2010

A perda

A perda que sinto é enorme. Não consigo suportá-la. Dói, embora já nem esteja presente. Dói exactamente ao contrário: dói pela ausência. Como pode a não existência doer? Mas dói imensamente. Dói a sensação de vazio que ficou. Dói o saber que nunca mais o terei. Dói o saber que não vou arranjar substituto. Dói o perceber a falta que me faz: como vou conseguir habituar-me ao dia-a-dia sem ele?

E na minha cabeça apenas existe um objecto cravado dia e noite, a habitar todos os meus sonhos. Sonhos, quais sonhos? São mesmo pesadelos. E a faca está presente em todos eles, com a sua lâmina bem afiada, toda salpicada de sangue vermelho vivo. Os meus sonos e os meus sonhos são vermelhos de sangue e inoxidáveis como aquela faca.

Faca: a palavra corta-me: faca!

E foi isso que ela fez: cortou o meu precioso dedo indicador. Indica dor!




segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Outro galo cantaria...


Há 20 anos que sou barman e psicólogo, como qualquer barman que se preza! E até fazem de mim confessor. As coisas que eu sei sobre esta fauna! Quando me reformar vou escrever um livro de memórias. Talvez “As memórias escaldantes de um barman aposentado” ou “Barman, psicólogo, confessor, conselheiro matrimonial, enfim: o homem dos sete ofícios”. Leitores não me vão faltar. Toda a malta que por aqui foi passando vai comprar para ver se os menciono. Ainda hei-de ser famoso, rico não creio, porque dizem que a escrita e o dinheiro não se dão muito bem.

A minha própria vida também vai dar uma boa ajuda: desde histórias bem apimentadas até alguns dramas mal amanhados… A minha mãe abandonou-me ainda eu era um bebé por não ter possibilidades de me criar, sou filho de pai incógnito. Depois de uma temporada num orfanato, fui entregue e aperfilhado por pessoas com pouca propensão para terem filhos, que me foram criando com muito pouco amor e bastantes maus tratos e pelos quais sentia um ódio dissimulado e mascarado de amor filial. Que fantochada!

Aos 17 anos pirei-me de casa e arranjei um trabalho que me permitisse sobreviver sem a “família” que me matava por dentro. E embarquei num cruzeiro. Comecei por fazer diversos trabalhos e, como agradava ao comandante, acabei por me tornar no animador de serviço. E se era animado o trabalho! Enquanto o Berlusconi fez asneiras e fortuna nestas andanças, eu apenas partilhei com ele as primeiras…

A vida prometia-me tudo, os meus dias eram verdadeiras aventuras: ganhava muito bem a divertir os outros e a mim próprio, conheci todo o género de pessoas, finalmente a minha vida era uma grande festa! Vivi aventuras e romances de todo o género, sempre bem tórridos, os quais irão deliciar os meus futuros leitores. Eu rebentava de felicidade até ao dia… mas adiante!

Hoje está uma noite calminha, as quartas-feiras dão para relaxar. É meio da semana e no meio é que está a virtude, assim o pessoal fica por casa a tentar descontar os pecados que pratica nos outros dias.

Já aí vem a primeira cliente. Mulher interessante! Nunca a tinha visto por aqui. Discreta, sentadinha na mesa do fundo com um ar pacato. O roxo fica-lhe a matar, combina com aqueles olhos verdes e pestanudos.

- Boa noite.

- Boa noite, queria um gin tónico, por favor.

Tem ar de solteira já em fim de prazo. Deve estar na fase do desespero. Pena! Não é nada de se deitar fora, é um pedaço de mulher!

Lá vem aquele executivo do costume, todo “comme il faut”, com o seu fato italiano. Deve ter a mulherzinha tipo tiazorra em casa, daquelas muito queques que só pensam em parvoeiras e não se aguentam! Como eu o compreendo! Nem precisa de pedir, já cá vai o JB 12 anos do costume. Gosta de olhar, mas também já o vi fazer o seu engate, sempre de bom gosto e muita descrição, um cavalheiro!

Ora, nem podia falhar, já está a dar em cima da pequena de olho verde e com o prazo de validade a esgotar-se. E ela a olhá-lo com um ar super-dengoso, com aqueles olhos que prometem muito, o paraíso no seu olhar, como diz o outro! Boa!

Ui, aí vem um do tipo intelectual de livrinho debaixo do braço e não é um livro qualquer, não sou nenhum expert em literatura, mas ainda sei quem é Kafka e reconheço “A Metamorfose”! O gajo tem ar de Miguel Sousa Tavares: feio, charmoso e com aquele ar enfastiado. Blazer de veludo cotelê bem gasto e jeans ruças: um ar pseudo-desleixado mas muito fabricado. Quem não os conhecer!

- Boa noite, queria um chá gelado, se faz favor!

Coitado: está a chá, num sítio destes, que lata! Faz o género! Não ia beber álcool como qualquer vulgar de Lineu!

A pequena de roxo ficou impressionada. Olha-o com um ar matador, daqueles que não deixam margem para dúvidas. É um olhar que derrete o coração mais empedernido! O executivo é que parece não estar a achar graça nenhuma. Pudera! Pensava que já estava no papo e pumba: aparece o Miguel e arrasa, dá-lhe cabo do esquema. Há noites assim! Nem sempre o peixe morde o isco…

Pois é, o Miguel olha para ela com o seu ar sobranceiro, que irrita as pedras da calçada e que deixa as mulheres estupidamente caídinhas, dirige-lhe um olhar avaliador e senta-se com o ar mais indiferente deste mundo! Abre o seu precioso Kafka e enfronha-se na leitura…

Meu Deus: tanta expectativa, o gajo lixa o esquema ao outro e, ainda por cima, vai dar cabo da auto-estima da pobre rapariga. Troca uma treta dum livro por uma febra daquelas! O mundo está de pantanas, é o que é! O que isto mudou, já não há homens como antigamente… Ainda bem que estou quase na reforma, não aguento ver estas merdas, dá-me volta ao estômago e tenho de engolir e cara alegre! Que desperdício! Se eu estivesse do outro lado do bar, outro galo cantaria…

Por falar em galo, que grande galo que eu tive com aquela mulher, a Xana! A vida estava a correr-me tão bem, conhecia gente linda e divertida, sempre renovada em cada viagem, curtia até não poder mais e se eu podia bastante!

Naquele dia embarcou aquela mulher com um ar enigmático, linda de morrer e eu fiquei absolutamente atraído, ela era um íman. A paixão assolapou-se e eu estava sem jeito, sem qualquer defesa, depositei ali todo o meu amor, aquele que nunca dera a ninguém. E recebi o mesmo em troca. Eu que era virgem em sentimentos! A entrega foi total e a paixão tomou conta de nós, sem nos dar margem para dúvidas. Nessa mesma viagem desisti daquela vida. Instalámo-nos num pequeno apartamento em Lisboa e começámos a viver um para o outro, a gozar o dia a dia, a fazer todo o género de loucuras que a paixão engendra até esgotar o dinheiro que tinha ganho naqueles anos todos. E aí tive de voltar a ir bulir. Surgiu este trabalho como barman que assentava na perfeição e cá fiquei até hoje.

A Xana? Durou o tempo que ela quis. Fomos felizes de uma forma que me retirou todas as possibilidades de voltar a sê-lo. Esgotei-me nela… Um dia cheguei a casa e ela tinha sumido e com ela sumiram todos os meus pertences. Se a procurei? Procuro-a todas as noites, procuro-a no fundo dos copos que vou esvaziando e me vão dando coragem de continuar a viver para ela. Vou procurá-la quando publicar o meu livro, ela será a protagonista ausente-presente e também a leitora que verterá algumas lágrimas algures em qualquer parte deste mundo ou, quem sabe, noutro qualquer …

Lá vem outro cliente… e outro e outro… copos, copos e mais copos …

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

O quinto elemento




É um dia quente. É um belo dia. Tudo é luminoso!

Que encantamento me vem deste lugar: é um azul forte, que contrasta com as montanhas que o enfeitam de um dos lados e o céu que o lambe lá ao fundo. E o calor não me perturba, apenas me faz sentir mais fortemente toda esta envolvência. As cores cantam! O mar muito azul vem suavemente rebentar naquela areia dourada e eu, deitada por ali, sinto-me igualmente dourada e sou também um elemento. Não sou a montanha que se debruça sobre este mar e o embala de ternura. Não sou este céu azul intenso que nos faz voar bem alto! Não sou o fogo, esse mora cá dentro. Sinto-me e sou o 5º elemento, aquele que não está ali e que é necessário: o sentimento que me habita e que pode cantar os outros quatro elementos, sou o elo de ligação, aquele que faz com que todos os outros existam e possam ser apreendidos e sentidos na sua beleza. Se não fosse eu estar a sentir cá bem dentro o que neste momento me enche e transborda para esta envolvência, esta paisagem seria mas insípida, mais trivial, mais sem cor. Nós somos o que vimos e o que vimos é sempre o nosso reflexo.

Daí, esta paisagem hoje é deliciosa, mas ontem poderia nem sequer ser.

A única constante é a mudança!

E o único sentimento que conta é o que neste momento me habita e transborda: este amor pela natureza que me embala neste dia quente e me faz sentir como parte deste belo quadro.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

A ampulheta existencial


Aquela ampulheta provoca a dor da passagem do tempo. A fina areia dourada não pára, cai por aquela passagenzinha minúscula, vai escorrendo de cima para baixo. E nós a absorvermos aquela ideia do tempo a escoar-se, cada segundo, tic-tac, e o tempo vivido a crescer e o tempo por viver a encurtar… E a própria estrutura de madeira é uma jaula da passagem do tempo, a madeira que será a do nosso caixão ou da pequena caixinha que levará a cinza dos que serão cremados… E a areia é imparável, não adianta tentar pará-la, a sua passagem é constante, devagarinho lá cai ela… O nosso envelhecimento vai ao ritmo da areia dourada, devagarinho, construindo as suas rugas, as suas mazelas, internas e externas, aumentando o caminho percorrido. E o mais injusto é que cada vez estamos mais agarrados à nossa vida, aos nossos afectos, ao nosso mundo! E sabemos que tudo vai terminar mas não temos qualquer informação do quando, como, aonde, com quem, de que forma.


Tal como a vida, também aquela ampulheta é bonita, reluzente, se apenas a analisarmos de fora e não interpretarmos o seu significado. Ela mede o nosso carrasco: o tempo! A beleza e o tempo são dois irmãos por quem nos deixamos enredar: prendem-nos, enganam-nos e depois largam-nos.

Por tudo isso, temos de aproveitar o entretanto muito bem, porque entretanto o entretanto já passou. Carpe diem!


quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Não deixes cair o teu véu...


Que encantamento me vem deste ser: quente, luminoso e forte! Tal como esta paisagem, ele faz-me sentir integrada, mas ao mesmo tempo com vontade de não me deixar ir, a contradição: a pertença e a não-pertença! Mas sempre este calor envolvente, protector! Tépido como a água e, ao mesmo tempo, calmante e excitante como o mar é tantas vezes! Embala-me com a mesma ternura com que a montanha se debruça sobre o mar. Ele é o motivo e a essência desta harmonia e desta luta. Ele existe para que eu sinta um sentimento e o seu contrário. É um contentamento descontente…. Os dias são mais coloridos porque ele existe. O acordar para o mundo, o sentir o mundo ganhou novos contornos. Tudo se alterou. Nada é o que foi e nada será o que é agora. O presente é agarrado com uma força desconhecida. Ele é a força. É o despoletar de uma natureza com uma energia que espanta a própria natureza.

E eu fui apanhada, gostosamente empurrada por este turbilhão de sensações. Como os estados de alma dão ou tiram o sentido das coisas é um mistério que nunca queremos descobrir completamente. Ao contrário do que o outro diz: não deixes cair o teu véu!

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

E tudo o vento levou


Estava uma tremenda tempestade e eles sentados naquela noite medonha naquele pedaço de paraíso envidraçado a tentar ver o mar furioso… Metia respeito! A seguir o trovão reforçou a sensação de medo! A crise de nervos tomou conta dela.

Até o peixe que estavam a comer estava nervoso, ou seriam os talheres que lhe tremiam nas mãos e que faziam o peixe ter vida própria mesmo depois de bem grelhado? Seria a presença ainda estranha daquele homem bonito ao seu lado que ajudava a sensação de pânico a tomar conta dela? O próprio Fritz, the cat cheirava o ar, seria o cheiro do peixe ou a tensão que pairava que ele estava a captar? A praia lá fora era um completo caos. A tempestade tomara conta de tudo e mal se vislumbrava algo que não fosse um cinzento leitoso e molhado.

Ela foi à cozinha buscar a salada. Quando voltou, aquele rapaz lindo que conhecera já não estava. A janela estava aberta. O gato fora curtir e não se via. Nada se via. Só se ouvia o barulho da tempestade e do vento!

Nesse momento compreendeu o total significado da expressão: e tudo o vento levou….