segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Outro galo cantaria...


Há 20 anos que sou barman e psicólogo, como qualquer barman que se preza! E até fazem de mim confessor. As coisas que eu sei sobre esta fauna! Quando me reformar vou escrever um livro de memórias. Talvez “As memórias escaldantes de um barman aposentado” ou “Barman, psicólogo, confessor, conselheiro matrimonial, enfim: o homem dos sete ofícios”. Leitores não me vão faltar. Toda a malta que por aqui foi passando vai comprar para ver se os menciono. Ainda hei-de ser famoso, rico não creio, porque dizem que a escrita e o dinheiro não se dão muito bem.

A minha própria vida também vai dar uma boa ajuda: desde histórias bem apimentadas até alguns dramas mal amanhados… A minha mãe abandonou-me ainda eu era um bebé por não ter possibilidades de me criar, sou filho de pai incógnito. Depois de uma temporada num orfanato, fui entregue e aperfilhado por pessoas com pouca propensão para terem filhos, que me foram criando com muito pouco amor e bastantes maus tratos e pelos quais sentia um ódio dissimulado e mascarado de amor filial. Que fantochada!

Aos 17 anos pirei-me de casa e arranjei um trabalho que me permitisse sobreviver sem a “família” que me matava por dentro. E embarquei num cruzeiro. Comecei por fazer diversos trabalhos e, como agradava ao comandante, acabei por me tornar no animador de serviço. E se era animado o trabalho! Enquanto o Berlusconi fez asneiras e fortuna nestas andanças, eu apenas partilhei com ele as primeiras…

A vida prometia-me tudo, os meus dias eram verdadeiras aventuras: ganhava muito bem a divertir os outros e a mim próprio, conheci todo o género de pessoas, finalmente a minha vida era uma grande festa! Vivi aventuras e romances de todo o género, sempre bem tórridos, os quais irão deliciar os meus futuros leitores. Eu rebentava de felicidade até ao dia… mas adiante!

Hoje está uma noite calminha, as quartas-feiras dão para relaxar. É meio da semana e no meio é que está a virtude, assim o pessoal fica por casa a tentar descontar os pecados que pratica nos outros dias.

Já aí vem a primeira cliente. Mulher interessante! Nunca a tinha visto por aqui. Discreta, sentadinha na mesa do fundo com um ar pacato. O roxo fica-lhe a matar, combina com aqueles olhos verdes e pestanudos.

- Boa noite.

- Boa noite, queria um gin tónico, por favor.

Tem ar de solteira já em fim de prazo. Deve estar na fase do desespero. Pena! Não é nada de se deitar fora, é um pedaço de mulher!

Lá vem aquele executivo do costume, todo “comme il faut”, com o seu fato italiano. Deve ter a mulherzinha tipo tiazorra em casa, daquelas muito queques que só pensam em parvoeiras e não se aguentam! Como eu o compreendo! Nem precisa de pedir, já cá vai o JB 12 anos do costume. Gosta de olhar, mas também já o vi fazer o seu engate, sempre de bom gosto e muita descrição, um cavalheiro!

Ora, nem podia falhar, já está a dar em cima da pequena de olho verde e com o prazo de validade a esgotar-se. E ela a olhá-lo com um ar super-dengoso, com aqueles olhos que prometem muito, o paraíso no seu olhar, como diz o outro! Boa!

Ui, aí vem um do tipo intelectual de livrinho debaixo do braço e não é um livro qualquer, não sou nenhum expert em literatura, mas ainda sei quem é Kafka e reconheço “A Metamorfose”! O gajo tem ar de Miguel Sousa Tavares: feio, charmoso e com aquele ar enfastiado. Blazer de veludo cotelê bem gasto e jeans ruças: um ar pseudo-desleixado mas muito fabricado. Quem não os conhecer!

- Boa noite, queria um chá gelado, se faz favor!

Coitado: está a chá, num sítio destes, que lata! Faz o género! Não ia beber álcool como qualquer vulgar de Lineu!

A pequena de roxo ficou impressionada. Olha-o com um ar matador, daqueles que não deixam margem para dúvidas. É um olhar que derrete o coração mais empedernido! O executivo é que parece não estar a achar graça nenhuma. Pudera! Pensava que já estava no papo e pumba: aparece o Miguel e arrasa, dá-lhe cabo do esquema. Há noites assim! Nem sempre o peixe morde o isco…

Pois é, o Miguel olha para ela com o seu ar sobranceiro, que irrita as pedras da calçada e que deixa as mulheres estupidamente caídinhas, dirige-lhe um olhar avaliador e senta-se com o ar mais indiferente deste mundo! Abre o seu precioso Kafka e enfronha-se na leitura…

Meu Deus: tanta expectativa, o gajo lixa o esquema ao outro e, ainda por cima, vai dar cabo da auto-estima da pobre rapariga. Troca uma treta dum livro por uma febra daquelas! O mundo está de pantanas, é o que é! O que isto mudou, já não há homens como antigamente… Ainda bem que estou quase na reforma, não aguento ver estas merdas, dá-me volta ao estômago e tenho de engolir e cara alegre! Que desperdício! Se eu estivesse do outro lado do bar, outro galo cantaria…

Por falar em galo, que grande galo que eu tive com aquela mulher, a Xana! A vida estava a correr-me tão bem, conhecia gente linda e divertida, sempre renovada em cada viagem, curtia até não poder mais e se eu podia bastante!

Naquele dia embarcou aquela mulher com um ar enigmático, linda de morrer e eu fiquei absolutamente atraído, ela era um íman. A paixão assolapou-se e eu estava sem jeito, sem qualquer defesa, depositei ali todo o meu amor, aquele que nunca dera a ninguém. E recebi o mesmo em troca. Eu que era virgem em sentimentos! A entrega foi total e a paixão tomou conta de nós, sem nos dar margem para dúvidas. Nessa mesma viagem desisti daquela vida. Instalámo-nos num pequeno apartamento em Lisboa e começámos a viver um para o outro, a gozar o dia a dia, a fazer todo o género de loucuras que a paixão engendra até esgotar o dinheiro que tinha ganho naqueles anos todos. E aí tive de voltar a ir bulir. Surgiu este trabalho como barman que assentava na perfeição e cá fiquei até hoje.

A Xana? Durou o tempo que ela quis. Fomos felizes de uma forma que me retirou todas as possibilidades de voltar a sê-lo. Esgotei-me nela… Um dia cheguei a casa e ela tinha sumido e com ela sumiram todos os meus pertences. Se a procurei? Procuro-a todas as noites, procuro-a no fundo dos copos que vou esvaziando e me vão dando coragem de continuar a viver para ela. Vou procurá-la quando publicar o meu livro, ela será a protagonista ausente-presente e também a leitora que verterá algumas lágrimas algures em qualquer parte deste mundo ou, quem sabe, noutro qualquer …

Lá vem outro cliente… e outro e outro… copos, copos e mais copos …

2 comentários:

  1. Menina, nunca pensei que a menina fosse capaz de fazer uma coisa destas. Eu que a tinha em tão boa conta. Eu que pensava que a menina era capaz de escrever umas coisitas. E, agora aparece com uma coisas destas!! então a menina foi capaz de copiar algumas páginas de uma livro( que pelo que se lê deve ser bom) e postar no seu blog!!! Olhe, já agora porque não copia o resto e faz um livro com esta óptima história?
    Gostei imenso. Continue. Bjs

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  2. Eu também gostei imenso. Gostava de ler a continuação desta história, do reencontro entre o braman e a sua Xana. Pensa nisso. Beijinhos e boas escritas, para me continuarem a proporcionar boas leituras ;)

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