domingo, 26 de dezembro de 2010

O mundo fechado



O guarda deu a volta à chave e disse-lhe: “Amigo, tenha um bom dia!”

Ironicamente, João é claustrofóbico. Estar encerrado sempre foi para ele um grave problema. E aquelas quatro paredes, aquela jaula vai-lhe dar cabo das já fracas estruturas mentais.

As paredes nem brancas são, já foram, agora são sujas… Uma cama, também ela encardida. Tudo naquele lugar está conspurcado, a sujidade que se entranhou no seu corpo, no seu espírito e suja tudo o que enxerga, o que toca…

Também o cheiro é mau: a medo misturado com humidade, a solidão de mãos dadas com a penumbra. É um cheiro fechado, triste, insuportável, que se entranhou naquele espaço, se instalou e não sairá nunca. É um quadrado viciado, vicioso, doloroso. Cheira a algo muito seu conhecido: cheira a impotência, a ratoeira, a dependência, à própria decadência, a loucura à solta mas condicionada pelos quatro cantos desta espelunca.

Começa a suar e a sentir que o pânico está a controlá-lo, a cabeça lateja forte. Tal como quando era pequeno e a mãe o fechava na despensa para o castigar. Castigos por tudo e por nada, pelos mais pequenos nadas…

A vida é um castigo constante, ele sabe, nunca foi outra coisa. Mas o maior castigo é mesmo saber que está e estará ali fechado, sem poder dar a volta ao assunto. Como não pode dar a volta à chave e fugir. O guarda é quem tem a chave da cela, como outrora era a mãe que guardava a chave da despensa. Só ele nunca há-de ter a chave de coisa alguma…

Só sabe que existe mundo porque a cela tem uma janela que dá para outra divisão. Nem sequer vislumbra se é dia lá fora. Para ele é sempre aquela luz duma lâmpada forte…

Começa a sentir que não consegue controlar a tensão que tem acumulada, começa a andar de um lado para o outro, cinco passos para a frente, volta, cinco passos para trás, volta, começa a acelerar, a acelerar os passos, por fora, a acelerar as pulsações, algo a crescer lá dentro, a endoidecer!

Como vai aguentar tantos anos que tem pela frente, ali, fechado? Tudo menos inactivo e fechado.

Activo e castigado, sim, é ele!

domingo, 19 de dezembro de 2010

Sentir



Deleite dos sentidos, de todos os cinco sentidos e dos outros sentidos todos que sentimos a cada momento. O sentir o minuto que passa e que já desperdiçámos. O sentir o contacto do tecido rugoso. O sentir a maciez do pelo do gato que nos acalma. O sentir no corpo a humidade da noite de chuva. O sentir a responsabilidade de ser coerente com o nosso sentir. O Sentir o amor pelo outro. O sentir o desejo que faz todo o sentido. O sentir que nos magoaram sem sentido. O sentir o prazer de mergulhar no mar. O sentir que sentir é o que conta.

O sentir é algo constante. Nunca pára. Até a dormir nós sentimos: as intermitências do sono, as pequenas recordações semi-conscientes… sentir, sentir, sentir. Que sistema mais aperfeiçoado que nós temos que nos permite este constante emaranhado de percepções!

Sentir que queremos sentir até ao limite, o medo do não sentir. Tanto que nos apavora o deixar de sentir. O medo do mundo do além do sentir.

Sinto muito! Os meus sentimentos! Sentidamente tua, vida sentida!



sábado, 11 de dezembro de 2010

Carta aquela mulher sensível que me fita do espelho


Olá minha Linda!



Eu sou a outra metade de ti, aquela com quem desabafas quando precisas de confrontar as ideias bem pensantes com as tuas loucuras, quando as dúvidas te assaltam, ou seja, o teu trivial pursuit.

De um lado está o ser que deveria corresponder às expectativas dos outros, ao que a sociedade convencionou, isto é, ao estar formatado. Do outro lado, está a pessoa contestatária e absolutamente indomável e sempre na oposição cada vez que uma ideia bem pensante está no poder. Sabes o que sinto? Medo: essa luta é desigual. O ser sensível que se deixa ferir pela insensibilidade reinante versus a pessoa que mostra fortaleza e dureza, mas chora por dentro. Venha o diabo e escolha!

Questiono-me frequentemente: será que a vida interior não será tão ou mais vivida do que aquela que vivemos por fora, para consumo externo? Onde começa uma e acaba a outra? São amigas ou têm de ser rivais? Sonho e realidade tocam-se… baralham-se…

Que trabalheira me dás. Não achas que já está na hora de perceberes que as conversas dentro da cabeça só servem para complicar a vida do lado de fora dela?

Oh God, make me good, but not yet…

sábado, 4 de dezembro de 2010

A dor




Aquele pedaço de campo era sinistro: o horror em estado puro! Os cromados retorcidos criavam imagens surreais à luz daquela lua tão perfeita e indiferente aquela catástrofe terrena. Apenas o fumo mexia subindo pela noite escura e dando uma teatralidade à cena que nos remetia para cenários demoníacos.

Há muito pouco tempo aquilo era um lindo carro vermelho, deslizando depressa pela noite, iluminado por aquela lua. Lá dentro íamos os dois em direcção a uma urgente noite de amor que prometia paraísos. Mas aquela curva ficou direita, o precipício esperava-nos e nós não esperávamos por ele. O paraíso que nos acenava passou a inferno: o incêndio foi rápido, a explosão brutal. Fomos consumidos depressa, a morte foi violenta e rápida.

Viver indica dor e morrer é indicador de que a dor acabou.

E estes meus pesadelos indicam que estou a enlouquecer…



quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

O quadro preto


Naquele Domingo cinzento chumbado  tardio sem qualquer cor externa que me aquecesse, resolvi visitar a colecção do Sr. Berardo no CCB.

Fui vendo até que estanquei. Aquele quadro deixou-me agarrada, muda e queda, impressionada e inquieta. Era rigorosamente preto, todo preto, sem nuances, sem texturas. Preto, monotonamente preto. Preto como o quadro preto da minha Escolinha: era o que me vinha à mente. Só que o da minha Escola Primária era primário e este era suposto ser uma obra de arte, valiosa, importante, marcante. Eu quedei-me, analisei, vi e tentei imaginar o que teria sentido o artista ao pintá-lo e o que quereria que eu sentisse. Eu bem queria sentir, mas o preto puro e duro entristecia-me e cortava-me qualquer voo, a minha imaginação fugira com medo do escuro. Eu sozinha (sem a imaginação, fico desamparada) fiquei ali como que atraída pelo abismo daquela monotonia preta. Quanto poderia valer aquela obra? Qual fora o critério para aquela compra? Qual era realmente a importância desta obra na História da Arte? Sentia-me uma pobre mortal a analisar uma obra de arte demasiado complexa num triste Domingo cinzento que estava a ficar mais preto. A coisa que mais desejava era arrancar dali, fugir do quadro preto e ir tentar colorir a minha tarde enquanto era tempo…

Mas impus-me ver o resto da Colecção. Continuei a tentar ver a exposição, mas aquele quadro não me saía da cabeça, de tal ordem que tudo o resto me passou ao lado. Mas que estranho: como é que um quadro que nada me diz me impressionou de tal forma? Mas o que é que estava lá invisível que se me gravou em qualquer lugar cá dentro e não me deixou atenção disponível para mais nada? Continuei até ao fim, sem nada ver e cada vez mais perturbada por aquela obsessão preta.

Voltei ao local do crime, salvo seja! Lá estava ele sossegado perante o meu desassossego, perfeito na sua nitidez preta contra a parede branca: o chamado preto no branco. Olhei à volta: os poucos visitantes que por ali andavam estavam entretidos a ver tudo aquilo que eu não conseguira ver. Ninguém olhava para mim.

Deu-me um ataque e com um marcador vermelho grosso que trazia na mala escrevi o a, e, i, o, u naquele fascinante quadro preto. Porque sim, porque me senti de volta à minha Escola Primária. Pena não haver um pedaço de giz branco que me pudesse transportar a esse tempo! É tão bom ser pequenino e ter quem nos explique o por quê das coisas…