sábado, 30 de abril de 2011

Viajar é muito mais belo que chegar




Viajar

É muito mais belo

Que chegar.

Sou passageira

Desta viagem

Sem destino,

Mas com chegada.

Estará já marcada?

Que bom viajar,

Deslizar,

Saborear,

Sem pressa

De chegar.

Da partida

Para a vida

Até à chegada

Para o nada.

Quero apenas

Desfrutar

A viagem,

Viajar.

Diz fruta o ar,

Disfrutar,

Frutado o entretanto,

Desfrutado

O próprio encanto

Do viajar.

Nada pedir,

Apenas deslizar,

Devagar,

Pela vida

Viajar.

Sem querer

Ver

O fim,

Sem desejar

Que a viagem

Acabe para mim,

Não assim.

Sim,

Viajar

É muito mais belo

Que chegar

Ao fim.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Nem tanto à morte, nem tanto à vida


Maria entra na capela e desfila como se entrasse numa discoteca, tipo: homens, cheguei!


O defunto era a sua última conquista. Não podia mesmo faltar a esta despedida. Mas quase lhe falta o ar de pensar que ele está mesmo ali, mortinho de todo! Ele que era tão agarrado à vida… Como não tem de lhe ver a cara, tenta pensar em algo mais animado. Olha, aquele morenão de olhos da cor do mar revolto da sua terra. E o mar da sua terra olha para ela… Maria olha de volta com o seu olhar mais profundo, mais penetrante: aquele que tudo promete e, no entanto, é tão ingenuamente reticente, tão vagamente misterioso, deixa margem para tudo.

O moreno passa ao seu lado e lança-lhe um apelo apaixonado, tem aquela expressão de cãozinho abandonado a precisar urgentemente de dona. Passa rente a ela e a calça toca a sua perna exposta. Desculpa-se e segue. Não tem de que se desculpar, ela gostou, até do seu tom de voz.

Ele dirige-se ao caixão. Meu Deus! O moreno destapa o rosto do morto.

Maria entra em pânico. Olha aquele ser acinzentado, que nunca mais a vai tocar. Começa a ver relâmpagos, acompanhados de um zumbido crescente nos ouvidos. Um enorme vórtice suga-a para os abismos do desmaio.

Assim, em vez de um, ficam dois corpos estendidos. Seria uma forma de prestar homenagem aquele último romance?

O corpo tem razões que o morto desconhece.

Nem tanto à morte, nem tanto à vida.

Será o desmaio um ensaio para a outra derradeira passagem?





sexta-feira, 8 de abril de 2011

Preto e branco. Nada de cinzentos.


A mulher é magra, está direita, sentada naquela secretária branca.

O que mais chama a atenção é o estar riscada de preto e branco. Riscas pretas paralelas a riscas brancas. Preto no branco. Saia preta. Olhos pretos. Nada de cinzentos.

Pega nas folhas de papel com determinação.

As riscas mexem-se, as dos braços saem do alinhamento, ficam oblíquas em relação às do peito. Afastam-se.

Pega num lápis preto e afia-o com força, com raiva. Pára. Afia outra vez. Pára. Afia mais. Gostaria de afiar assim a vida, até a tornar fina, perfeita.

Claro que partiu o bico do lápis. Também partiu a puta da vida. Foi mais uma coisa que partiu.

A sua vida está partida. O bico do lápis também. Ele também partiu. Tudo se vai partindo à sua volta. Também ela gostaria de partir. Mas para aonde?

A fúria domina-a.

Pega noutro lápis já afiado. Quem lhe dera pegar noutra vida já afinada!

Pensa, pouco, não tem tempo para pensar muito.

Escreve e risca o papel com aquele braço às riscas. Toda ela são linhas pretas e brancas em movimento. As riscas pegam no lápis e riscam, riscam, a preto, no branco do papel imaculado. Só mesmo o papel está imaculado. Sem mácula. Sem mágoa.

Amachuca o papel com raiva.

Que há-de escrever aquele imbecil que lhe amachucou a vida?

Atira com força a bola de papel para o caixote do lixo.

Pensa rápido. Esfrega o nariz.

Volta a escrever com rapidez, com fúria.

Precisa pensar. Não consegue.

O que lhe quer dizer não ganha forma, não passa para o papel.

Tenta escrever rápido, mas a mão não risca com a rapidez do pensamento.

Revolta-se com a lentidão da mão. Ou será com a rapidez do pensamento?

Que se lixe!

Faz uma bola com a folha e atira-a para o chão.

Apetece-lhe fazer o mesmo com os sentimentos que não a largam…

Tenta novamente.

Escreve e apaga com uma borracha branca.

Quem lhe dera também apagar o que aconteceu. Apagar aquela presença que ficou.

Faz o gesto de sacudir essa presença.

Escreve durante um tempo, furiosamente, afincadamente, decididamente.

Lê.

Rasga o papel ao meio e junta. Novamente ao meio e junta. Até ficarem pequenos bocadinhos. Manda-os ao ar. Caem pelo chão.

Tudo fora, tudo para fora.

Dentro fica a raiva e a impotência, duas primas direitas.

Por dentro o risco.

Por fora as riscas.

Viver é mesmo arriscado.

Vive a preto e branco.

Não tem lugar para os cinzentos.

Sofre também a preto e branco.

Mas sonha com um amanhã colorido.

"Pelo sonho é que vamos..."



segunda-feira, 4 de abril de 2011

Uma experiência vermelha


A excitação também é vermelha, a paixão avermelhava tudo e o vestido da Rita apenas dera o mote.

Naquele night club, na altura chamava-se cabaré, o vermelho era rei, regia todas as outras cores.

O público era muito diverso, muito entusiasmado, muito expectante.

Estava muito na moda frequentar aquele género de divertimentos nocturnos, era o revivalismo, o ser diferente, o ir a todas.

A proposta fora demasiado apelativa, o convite dizia: “Vem só tu, não tragas nenhum preconceito. Vem viver uma noite única, sem programa estipulado. Uma condição: vem de vermelho. Esta noite é vermelha, a cor da paixão, da luxúria, do desejo. Esperamos por ti. Vais viver momentos únicos.”

Era o tempo em que tudo era possível, o futuro estava por preencher, ela era a dona do mundo e tinha que viver tudo e depressa.

Aquele convite fazia-lhe muito sentido. Momentos únicos eram irrecusáveis. Experiências diferentes, tudo o que era diferente atraía-a.

Ela ainda nunca entrara num cabaré e aquele convite tornara a coisa mais desfiadora, mais escabrosa, mais desejada.

Os anos eram loucos, de surpresas constantes. O país estivera tão fechado a sete chaves, tinha sido tão cinzento e tão sem graça, que agora não havia tempo a perder, tudo estava por descobrir e o tempo era de festa.

A revolução vermelha abrira tantas portas, tantas janelas… e todos espreitavam por elas. Era um encantamento.

O vermelho dos cravos, a revolução dos cravos vermelhos.

E o convite era em vermelho, convidava a vestir vermelho, a noite seria vermelha naquele cabaré antiquado.

A sala estava cheia. A assistência estava ao rubro toda vestida de vermelho. Todos tinham recebido o mesmo convite. A música também era colorida. Todo o mundo dançava “aquelas músicas malucas”, como diz o outro. A dança, a bebida, tudo fazia rodopiar. E dançou-se e bebeu-se e voltou a dançar-se.

O espectáculo fazia-se esperar.

O cabaré todo em vermelhos e dourados. Havia salinhas e mais salinhas. Recantos e mais recantos. Camarotes e mais camarotes. Havia de tudo: um barbeiro a funcionar, uma tabacaria tipo brique-à-braque, cabeleireiro e manicura e até uma boutique de lingerie, que dá sempre jeito numa noite que se preze.

Tudo era fascinante, antes fora fascizante. Tudo roçava o rasca, mas depois duns copos, tudo ganhava patine.

Até que a música encaminha para o aguardado e badalado espetáculo.

Uma senhora platinada, muito decotada, muito maquilhada e muito passada apresentou o dito strip-tease, com toda a pompa e circunstância.

Abrem-se as cortinas, e o cenário surge também ele em vermelhos e dourados.

Nada a preparara para o que se seguiu.

Um velhote magro e com o pouco cabelo nos seus avançados setentas e a sua partenaire da mesma época, com um cabelo louro armado para lhe aumentar o seu metro e meio apareceram tentando mostrar uma vivacidade que deviam estar longe de sentir. E lá começaram o seu número de strip-tease, lento, degradante e vermelho, mas de vergonha.

Realmente foi uma noite vermelha, que ficou gravada a negro na sua memória.

Nem todo o vermelho é excitante, nem todo o dourado é ouro. Nem tudo o que é diferente é interessante.

Mas sem experimentar, nunca saberemos.