segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

O desconhecido é o nosso bem


Ana entrou no carro. A raiva comandava. Arrancou num ápice. Nem se lembra de ter arrancado. Acelerou estrada fora. A velocidade era a sua raiva feita movimento.
Tudo à volta desapareceu. Ligou o piloto automático. Na sua cabeça só a raiva reinava, aquela cena, aquela discussão medonha repetiam-se à exaustão. A revolta e a impotência eram donas de si. Eram os piores dos sentimentos. Fora o fim de todo aquele dar e pouco receber. O passado era um filme galopante na sua cabeça. Umas vezes comédia romântica. Outras vezes filme negro. Mas nem no pior dos seus pesadelos supôs que acabaria assim. A cabeça ia rebentar-lhe.
De repente, um enorme solavanco. O carro estancou.
Ana acordou para a noite que estava a nascer. Não dera conta. Olhou à volta. Estava numa estrada que acompanhava o mar.
Oh, o mar! Sentiu o corpo. Sentiu-se. Acariciou-se. O calor era enorme ainda. O dia aquecia a noite.
Algo crescia dentro dela. A raiva estava a ir embora. Já não a sentia.
Uma doce sensação amaciou-a. Estava só. Não sozinha. Tinha perdido alguém que já nada valia.
Estava tão bem acompanhada por si mesma.
Uma enorme sede de desconhecido invadiu-a.
Desligou o botão do bom-senso.
Ligou a vontade de ousar. De usar a sua recente liberdade.
Despiu-se e correu pela praia deserta. Entrou nua naquele mar enorme. Lavou a alma.
Naquele fim de dia. Naquele fim de ciclo. Apaixonou-se pelo desconhecido. A sensação desconhecida de se encher de si mesma para poder recomeçar noutra. Noutro caminho escolhido numa encruzilhada da sua vida.
Nada se perde. Tudo se transforma.
A raiva transformara-se em oportunidade de conhecer o desconhecido.
Venha ele!

 

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

En carnado




I
Encarnado,
Inspirado na cor
Do sangue,
Colorido
No sentido
De compor
Caminho vivido.
Sentido
E carnado
De carne
E centelha
Vermelha,
Soprada,
Inspirada,
Gostada.
Gostosa.
Trincar a vida.
Inalar o ar
Encarnado,
Sugado.
Sorver a inspiração
E vomitá-la
Numa cadência
De criação.
Tocar,
Esfregar,
Sentir
O rugoso do dia,
Lamber
A escuridão
Da noite.
Esticar-se
E tocar estrelas,
Torná-las cadentes,
Prementes,
Prenhes de poemas,
Plenas.
Ouvir
O silêncio
Tocar os violinos
Da nossa solidão
Interior.
Nascer é crescer
Para caminhar
E parar
E voltar a encolher
Até…
Nada saber
E tudo conter.
Encarnar infinito.

II
Encarnado
É o sangue que jorra
no acto de nascer
e pára
um dia
de nos percorrer.
Morrer
Ou não…
Talvez
Renascer.
A sensação de já saber
Por intuição.
Encarnar,
Saturar o ar
De cor
Caminhada,
Possuída
E devolvida
À estrada
Da evolução.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

A minha caneta




Sais-me pela ponta da minha caneta,

Em hora de ponta

Eu viro poeta.

As palavras são mágicas,

Com elas faço o que quiser,

Faço mundos acontecer,

Um deus pode viver…

Posso ter no meu quarto um leão

Ter na ponta da caneta qualquer emoção.

O longe não existe,

Posso estar perto de ti.

Já estou aí.

Na ponta da minha caneta

Todos os sonhos podem acontecer.

Posso até voar,

Posso aí estar

E ao mesmo tempo

Não sair deste lugar.

Posso até morrer

De prazer

E voltar

E ser

Outra vez

Apenas eu.

Aqui.

Agora.

Só.


sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Hoje é o dia dos meus anos



Hoje é o dia dos meus anos…

Quantos anos?

Muitos anos?

Poucos anos?

Anos...

Às vezes vividos com emoção,

Outras não.

Anos

São enganos

Ou desenganos.

Não sabemos.

Vivemos

Apenas

Com paixão,

Às vezes, outras não.

O bater do coração

Cadenciado,

Acelerado

Com precisão,

O relógio-coração.

Anos de partilha

Com amigos,

Companheiros,

Seres queridos,

Encontrados,

Perdidos,

Caminhados

Nos trilhos

Da vida.

Obrigada,

Mãe,

Mãe terra,

Pai,

Pai universo,

Irmãos encontrados,

Perdidos,

Achados

E muito amados.

Obrigada centelha

 da minha vida

Também fazes hoje anos,

Companheira,

Vais inteira

Comigo

Até à recta final.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

O meu carro e eu

O meu carro morreu.
E doeu.
Porque o meu carro era lindo
E era meu.
Feito uma pessoa, bonito, companheiro.
Era vermelho.
Uma cor quente,
Que me aquecia por dentro.
Quando saíamos, eu e o meu carro,
Éramos uma incandescência
A deslizar por essas estradas fora.
O que nós gozávamos,
Nesses loucos anos,
O meu carro e eu!
Fomos por esses cenários fora,
Percorremos paisagens de cortar o respirar…
Vimos o sol  se pôr vezes sem conta,
Sempre diferente,
Sempre poente, urgente.
Vimos tanta noite nascer,
Tanta noite morrer!
E começámos muitos dias sempre novos,
Como nós juntos de novo sempre.
O meu carro e eu.
Às vezes tínhamos companhia,
Às vezes bastámo-nos um ao outro,
Avermelhámo-nos um ao outro…
Crescemos juntos,
Cuidámo-nos,
Mimámo-nos.
Brincámos,
Descobrimos mundos.
Fomos tão amigos,
O meu carro e eu!
Fizemos muitas viagens,
às vezes sem sair do mesmo sítio…
Enroscava-me nele,
Nos seus assentos gostosos,
De pele,
E a minha pele fundia-se na sua pele.
Confortável.
Adorável
O prazer que ele me deu,
O meu carro…
Como fomos amigos,
Inseparáveis,
O meu carro e eu!
Que vou eu fazer,
Como vou eu viver,
Agora que ele morreu?
Já sei,
Para fazer o luto,
Vou comprar outro carro,
Mas preto.