domingo, 6 de fevereiro de 2011

Aquela velha senhora


Aquela velha senhora trémula, sentada naquela sala confortável com uma mantinha de lã vermelha nos joelhos, olhava o horizonte alaranjado pelos últimos raios do fraco sol de Setembro, que lhe trouxe de volta outro Setembro. Mais uma de tantas vezes segurou entre os dedos aquele frasco vermelho sangue sem coragem de o abrir. Era só mais uma vez… mas não, era chegado o momento, era hoje, era agora: com uma antiga emoção retirou aquela tampa de prata velha do frasco vermelho, que emitia pequenos raios reflectidos do sol lá de fora, ou seria da luz daquele passado que encerrava?

O seu coração galopava, o vermelho da manta subiu para o seu rosto e o aveludado vermelho húmido daqueles dias e daquelas noites encheu esta confortável sala de paixão. O cheiro a jasmim misturado com o cheiro daqueles corpos que tanto se amaram tomou conta do ambiente, a sala ganhou vida. Tudo era real, tudo se animou, ela tornou-se ágil e fogosa. O sabor a amoras remoçou a sua boca. Ele estava ali com ela outra vez. Estava de volta, não podia deixar de ser. Levantou-se com o entusiasmo que ele sempre lhe provocava e pôs a música deles a tocar como tantas vezes pusera… Ele enlaçou-a e dançaram com a paixão de sempre, tudo voltou a ser. A sala ganhou calor e a vida voltou a ter o antigo sabor e ela sentiu a vida a mimá-la. Os sonhos voltaram a construir-se com a mesma certeza de virem a ser reais algures no futuro. Tudo valia a pena. Eles estavam juntos, nada lhes podia acontecer, eram fortes, eram eternos como o seu amor. E mais uma vez foram pela praia fora, passeando, correndo, beijando-se. O mar, sempre o mar a inspirá-los, a renová-los.

Um barulho na rua chama-a de volta aquela sala fria e real. Ela já é outra mulher, ele já não está ali, mas sim está na mesma por ali, algures dentro dela. É apenas uma mulher mais madura, que eufemismo! Mas ainda sente tanta juventude, ainda vibra tanto! Aquele corpo é apenas uma capa velha que cobre um tesouro. Tem tanto amor guardado para saborear quando abre os seus frasquinhos! É bom ter vivido tão intensamente, assim pode visitar o seu mundo privado quantas vezes quiser e pode colorir estes dias cinzentos e aquecer estas noites frias…

Se não fosse ter guardado tantos bons momentos em frascos que abre nestas noites, como poderia ter tanta inspiração para o romance que anda a escrever? Ainda bem que a memória não a tem traído, é selectiva e esqueceu as partes mais desagradáveis.

Volta a fechar aquele belo e gostoso frasco vermelho com a sua elegante tampa de prata velha. Agarra no bloco e recomeça a escrever enquanto as ideias saltitam. O diálogo entre ela e o papel é intenso. Extravasa o que já não pode guardar lá dentro, o que tem de libertar, de partilhar. As palavras encadeiam-se, agrupam-se, fazem fila, mudam de lugar, aproximam-se das amigas que lhes dão mais sentido, que as completam, que as ajudam a criar ideias, um poema em prosa. A caneta tem dificuldade em seguir aqueles pensamentos galopantes.

Ninguém diria como são animadas e produtivas as noites daquela velha senhora!


2 comentários:

  1. Esta velhota é um encanto. Adorei o texto. Parecia que estava a ler Sarah Addison Allen, tal foi a magia do momento e das tuas palavras. E o vermelho continua na tua escrita, uma boa cor, e que pelos vistos te inspira :D

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  2. Vermelho cor, vermelho sangue, vermelho vida. vermelho paixão. Senhora de idade e sentimentos sem idade. Em cada um de nós há sempre um frasco vermelho que guarda o amor. Gostei e muito.

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