segunda-feira, 12 de julho de 2010

A máquina de fazer espanhóis - Valter Hugo Mãe


Foi a minha iniciação à escrita de Valter Hugo Mãe e fiquei completamente fã.
A máquina de fazer espanhóis fala de nós, portugueses. É uma análise encantadora e desencantada de quem somos.
Ele dedica o livro ao pai, que não teve o direito de viver a terceira idade. E leva-nos a visitar essa idade maior pela cabeça e pelo coração de António Silva, de 84 anos. Tudo começa no dia da sua maior perda: a morte do sua querida mulher, a companheira de vida sem a qual nada já faz sentido. A memória do seu amor eleva-o e enterra-o. Mas as novas amizades e aventuras do Lar Feliz Idade, o armazém de velhos onde a filha o deposita,  vão ampará-lo e até acordá-lo para outras realidades.
"Aprender a sobreviver aos dias foi como aceitar morrer devagar." "A manha é a arma mais sofisticada dos velhos." "Apenas a gestão do tempo pode fazer-nos escapar à loucura."
Podemos também assistir como aos oitenta se pode  regressar às traquinices da infância e como pode voltar a saber tão bem! "Não têm vergonha na cara, estes homens desta idade, parecem putos, éramos velhos tolos a trazer da tolice uma promessa de vida qualquer."
A ditadura está sempre na memória: "que o regime se nos metia pela pele adentro como um vírus. ficávamos sem reacção, íamos pela vida abaixo como carneirada, tão bem enganados." "a ignorância é que nos pacifica, a paz está toda metida na ignorância, pronta para levar as pessoas à felicidade, e isto era a receita do regime."
E emite opiniões políticas, para não nos deixarmos adormecer: "que merda de palavra, o progresso, e o sucesso e tudo quanto o capitalismo usa para nos pôr  a competir uns com os outros."
Com ironia, vai apontando verdades tristes: "os cães no algarve têm de aprender a miar, porque ali ninguém sobrevive sem falar duas línguas."
E, como invade a vida, deus também invade a escrita: "deus, esse olho gordo aberto nas nossas cabeças." "também inventamos deus porque temos de nos policiar  uns aos outros." "os homens acreditam em deus porque não são capazes de acreditar uns nos outros."

Este livro faz-nos pensar, e muito, sobre a vida, a morte, o envelhecer... É um estímulo para dar voz à terceira idade e exigir para a última fase da vida um papel mais digno e mais vivido em qualidade. Arranca-nos lágrimas e sorrisos.
Valter Hugo Mãe é um escritor muito autêntico, com uma escrita muito forte sobre o que nos toca, o que vivemos e o que temos direito a viver. Não nos deixa indiferentes, não escreve para nos entreter. Dá-nos alguns murros no estômago e depois brinda-nos com momentos da maior ternura. Faz-nos pensar sobre a nossa condição e obriga-nos a reanalisar algumas realidades.

"precisava deste resto de solidão para aprender  sobre este resto de companhia, este resto de vida, que eu julguei já ser um excesso, deu-me estes amigos, e eu nunca percebi a  amizade, nunca esperei nada da solidariedade, apenas da contingência da coabitação, um certo ir obedecendo, ser carneiro, eu precisava deste resto de solidão para aprender sobre este resto de amizade."

Melhor é impossível: o encarar a parte final da viagem com esta poesia e este aproveitar do que a vida continua a reservar e que ainda é tanto!

Aprende-se todos os dias até ao último!


 

2 comentários:

  1. Mais uma leitura e pelos vistos uma boa leitura. É bom saber que ainda há quem se preocupe com os mais velhos e lhes dedique livros. A velhice é sabedoria, e só por isso mesmo há que respeitar os mais velhos. Bom texto, boa crítica .

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  2. Eu também li "A máquina de fazer espanóis". Gostei bastante do conteudo do livro. Aprendi a ver a velhice (estou quase lá) com outros olhos. Percebi como é difícil deixar o nosso canto e enfiarmo-nos ou enfiarem-nos num ambiente desconhecido. Tive mta dificuldade com a grafia do livro. A falta de maiúsculas fez-me perder. Tenho dificuldade em ver os pontos. Por isso, não sabia quando coneçava ou acabava um período. Mas, no geral gostei. Mª Chagas

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