quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Bar "Ainda a noite é uma criança..."




MULHER DE PRETO

Naquela noite preta, preta, vesti-me completamente de preto e com a alma bem preta fui aquele bar do costume. Entrei, passei pelo balcão, apanhei o meu costumeiro acompanhante gin tónico e fui para a mesa mais discreta, mais ao fundo, mais dentro e mais fora dali. Pela primeira vez apercebi-me que o bar era grande ou eu senti-me tão pequena que tudo o resto era enorme. Bebi com prazer, com vontade de me afogar…

Olho para a porta e vejo entrar um velho muito velho com uma boina à Che Guevara preta contrastando com uma bela cabeleira branca tipo ovelhinha imediatamente antes da tosquia. Entrou ensaiando uns passos malucos cegos e trôpegos na vã tentativa de alcançar o balcão. O barman, sempre atento, vai ao seu encontro e lá o encaminha para um banco próximo. Ele executa uma pirueta muito cómica, tenta uma vénia e quase cai, endireita-se num ápice e pede “um whisky bem aviado” numa voz aflautada tão cómica que desato a rir, tenho um sério ataque de riso incontrolável. Não consigo parar. Choro a rir. A situação é idiota de todo.

Eis senão quando entra em cena um ser absolutamente indescritível, que me faz voltar ao normal: é homem, é mulher? É alguém que flutua até ao balcão, vestido com um azul eléctrico que quase me encandeia, com uma capelina a condizer, segurando um cigarro numa boquilha da mesma cor. Tudo nele/nela é daquele azul magnético, com uma excepção: o livro que segura com tanta elegância. E surpresa: era “O Principezinho” de Saint-Exupéry!


VELHO COM BOINA À CHE GUEVARA

Vi aquela mulher de preto atravessar a rua sempre a olhar em frente, seguindo direita ao bar, atropelando o trânsito, por sinal bem intenso e que estancava em cima dela. Ela parecia nem reparar e lá ia completamente doida: queria matar-se, estava noutro planeta, seria surda?

Tinha de indagar! Assim, pensei um breve minuto e achei que ela estava a precisar de ajuda. Como de costume, eu tinha de interferir, indiferente é adjectivo que não se me aplica.

Entrei no bar ensaiando uns passos amalucados, vagueei como se fosse muito mais velho e estivesse bem bebido, ou drogado, ou Alzheimeriado de todo. Fui por ali fora sem olhar para lado nenhum, como ela fizera no meio do trânsito, só que ali ela era a única espectadora, tirando o barman, claro. Ele topou-me e lá me encaminhou para o balcão. Pedi um whisky bem aviado numa voz aflautada que faria rir o comum dos mortais, bem alto para ver se ela ouvia. E ouviu mesmo, porque se escangalhou a rir, incontrolavelmente, sem parar. Era isso: ela estava na fossa, ia de um extremo ao outro no mesmo minuto.

Meu Deus, como poderia eu ajudá-la?

Estava no meio deste dilema, quando vejo aparecer uma figura azul completamente sui generis, andrógina q.b., que me desvia completamente a atenção. Desfilava como se estivesse numa passerele aplaudido por uma plateia em delírio! Era o oposto da mulher de preto: queria mesmo era chamar a atenção, vinha para ser visto, era o centro dum universo só existente na sua cabeça. Dirigiu-se ao balcão e aquele azul intenso que usava fez-me sentir num mundo azul, ele azulou tudo à volta, pedindo numa voz nasalada com sotaque estrangeirado:

- Garçon, boa noite! Tem absinto?

Absinto? Que absurdo, aquela estranha figura, pedindo uma estranha bebida e passeando pela mão “O Principezinho”.

Somos todos personagens fellinianas. A vida é um grande palco, como dizia o outro. E nós desempenhamos tantas personagens quantas a nossa imaginação permite!

PERSONAGEM AZUL

Entrei naquele bar por que o nome me chamou: “Ainda a noite é uma criança…”. Eu também achava, era uma criança ávida de aventura.

Eu estava com a pica toda, ia super bem disposto. Ainda era cedo, mas entrei com todo o meu glamour, destilando charme, cheio de vontade de me divertir, de curtir. Dirigi-me ao balcão e olhei insinuantemente para o barman, um tipo giríssimo, género “portas” de discoteca fashion, bem curtido e pedi na minha voz mais sexy: “Garçon, boa noite. Tem absinto?”

Esperei, esperei e só a muito custo e quase por favor me respondeu: “Não vendemos disso”.

Que mau feitio. Tão bonitinho e tão parvinho! Que seca!

Só então reparei num velhote de boina à Che com cabelo branco em cachos, com o ar de quem já tinha visto melhores dias e principalmente melhores noites e me olhava de boca aberta. Mirou-me dos pés à cabeça e fixou o olhar no meu livro como se eu fosse o portador de algum truque de magia que o pudesse salvar de mais uma noite de tédio à voltas com o seu querido whisky.

Então lá tive de pedir aquele metrosexual: “Bom, nesse caso, quero um carolans com duas pedrinhas de gelo”. O tipo olhou-me com mal disfarçado asco, como se eu fosse algum réptil: desgraçado!

As pessoas sempre me olham como se eu fosse um ovni. Parece que não suportam quem é diferente. Gostariam que eu tivesse o género escrito na testa. Mas eu adoro baralhar e dar de novo: não sou homem nem mulher, sou um bicho, esta noite sou um bicho azul intensíssimo, gostoso, charmoso, que desperta a curiosidade. Ontem, por exemplo, fui um outro ser, rosa, tipo pantera. Adorei! Sou um ser colorido. Não me peçam para ser um bicho cinzento, um homem pardo, uma mulher transparente. Que horror: a normalidade enerva-me. Viva a diferença!

Peguei no carolans que o garçon me trouve e fiz “Cheers” a ele e ao velho. Ambos continuaram a olhar sem reacção. Que brutos! Por sorte estava uma bela senhora vestida de preto com uns olhos pretos enormes que me respondeu “Saúde e noite feliz!”

1 comentário:

  1. Três histórias diferentes, três personagens encantadoras, cheias de estilo, bem caracterizadas. Adorei mais uma vez. A tua escrita é sempre agradável de ler. E a tua descrição, está a ficar apurada. Gostei deste trabalho, estou a ver que no curso estão a desenvolver a construção de personagens, que é uma coisa bem difícil. Não basta apenas ter um nome, tem de se ir mais fundo para cativar o leitor a querer conhecer e saber mais dos protagonistas de uma história. E tu sabes fazê-lo muito bem. Beijinhos :)

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