quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

O quadro preto


Naquele Domingo cinzento chumbado  tardio sem qualquer cor externa que me aquecesse, resolvi visitar a colecção do Sr. Berardo no CCB.

Fui vendo até que estanquei. Aquele quadro deixou-me agarrada, muda e queda, impressionada e inquieta. Era rigorosamente preto, todo preto, sem nuances, sem texturas. Preto, monotonamente preto. Preto como o quadro preto da minha Escolinha: era o que me vinha à mente. Só que o da minha Escola Primária era primário e este era suposto ser uma obra de arte, valiosa, importante, marcante. Eu quedei-me, analisei, vi e tentei imaginar o que teria sentido o artista ao pintá-lo e o que quereria que eu sentisse. Eu bem queria sentir, mas o preto puro e duro entristecia-me e cortava-me qualquer voo, a minha imaginação fugira com medo do escuro. Eu sozinha (sem a imaginação, fico desamparada) fiquei ali como que atraída pelo abismo daquela monotonia preta. Quanto poderia valer aquela obra? Qual fora o critério para aquela compra? Qual era realmente a importância desta obra na História da Arte? Sentia-me uma pobre mortal a analisar uma obra de arte demasiado complexa num triste Domingo cinzento que estava a ficar mais preto. A coisa que mais desejava era arrancar dali, fugir do quadro preto e ir tentar colorir a minha tarde enquanto era tempo…

Mas impus-me ver o resto da Colecção. Continuei a tentar ver a exposição, mas aquele quadro não me saía da cabeça, de tal ordem que tudo o resto me passou ao lado. Mas que estranho: como é que um quadro que nada me diz me impressionou de tal forma? Mas o que é que estava lá invisível que se me gravou em qualquer lugar cá dentro e não me deixou atenção disponível para mais nada? Continuei até ao fim, sem nada ver e cada vez mais perturbada por aquela obsessão preta.

Voltei ao local do crime, salvo seja! Lá estava ele sossegado perante o meu desassossego, perfeito na sua nitidez preta contra a parede branca: o chamado preto no branco. Olhei à volta: os poucos visitantes que por ali andavam estavam entretidos a ver tudo aquilo que eu não conseguira ver. Ninguém olhava para mim.

Deu-me um ataque e com um marcador vermelho grosso que trazia na mala escrevi o a, e, i, o, u naquele fascinante quadro preto. Porque sim, porque me senti de volta à minha Escola Primária. Pena não haver um pedaço de giz branco que me pudesse transportar a esse tempo! É tão bom ser pequenino e ter quem nos explique o por quê das coisas…

3 comentários:

  1. O "quadro preto" é uma obra de arte. Porquê? Porque a impressionou de tal maneira que fala e pensa nela. Sente repulsa, medo, angústia mas, sente. É isso q qualquer obra de arte deve fazer. Imagine o que nos fará sentir o buraco negro ( se o vissemos).
    Se eu estivesse lá tb não gostava. Bjs

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  2. O interessante é ver para além da obra de arte, e tu viste. E isso só a valorizou. Beijinhos

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