segunda-feira, 14 de março de 2011

Uma ausência presente


Só muito mais tarde percebi que aquela noite determinou toda a minha infância, toda a minha vida. Foi a noite mais triste de todas as minhas noites. Eu nem tinha três anos. Só o soube mais tarde quando essa tristeza feita ausência e saudade invadiu outras noites, outros dias.

Algures no meio do nevoeiro dos primeiros anos da infância lembro uma noite, apenas essa noite. Única e solitária recordação do início de uma vida: a minha.

Acordei com gritos, conversas, luzes. Era tarde na noite. Levantei-me estremunhada. A casa cheia de gente, que bom! Quando me viram, tudo mudou. Abraçaram-me, beijaram-me. Senti-me muito protegida, mas não percebia de quê. Apertavam-me contra o peito e diziam: “Coitadinha!” Que conforto, andava de colo em colo e sentia-me apaparicada. A minha mãe chorava e gritava, deduzi que estava com dores. Também ela me abraçava e sabia-me tão bem! Entravam e saíam pessoas e falavam baixinho, tristes, algumas choravam. Diziam que eu devia sair dali para que não me apercebesse de nada. A minha tia vestiu-me um casaco e levou-me para casa dela. Berrei, esbracejei, dei pontapés, só queria ficar ali em casa naquela noite em que não se dormia. Por que é que me levavam? Afastavam-me de quê, de quem?

No meio do nevoeiro da memória, há uma linda gata que me fez muita companhia nesses dias perdidos em que me senti perdida e precisei muito daquela bichana para acariciar, para brincar, para me fazer companhia.

Nesse dia a minha gata mal viu aquela pequenina coisa a sair, mandou um salto para o meu colo. O segundo a nascer teve mais sorte, ela já o lambeu devagarinho, com algum medo misturado… E voltava para mim: o seu porto seguro. A pouco e pouco foi sentindo curiosidade, aproximou-se dos pequeninos desconhecidos e começou a lambê-los, a amá-los, a protegê-los e apaixonou-se pelas minúsculas criaturas. Nesse tempo também eu era uma pequena pessoa. Estes gatinhos eram eu: todos precisados de amor. Só tinham aquela gata e eu para os mimar e proteger do mundo ainda desconhecido e tão apetecido…

Aquela noite deixou-me mais só, uma criança mais vulnerável, roubou-me um grande amor. Perdi alguém que adorava ter tido, cuja ausência fez toda a diferença, cujo vazio nunca mais seria preenchido. Essa foi a noite mais triste da minha vida, não o podia saber então, mas soube-o em muitas outras noites, em muitos outros dias.

Os seus grandes olhos negros, profundos e risonhos olhavam-me daquele mundo sépia em que a vida ainda lhe prometia tudo. No dia do casamento, lindo e apaixonado, olhando a minha mãe muito morena a contrastar com aquele vestido branco e elegante. Aqui segurava bem alto aquela bebé careca de olhos iguais aos dele e riam os dois. As promessas que estão ali contidas… Era o tempo de nos sentirmos, de nos desfrutarmos… Nesta outra estamos os três a dar milho aos pombos, eu com um vestidinho com muita roda e uns enormes caracóis a caírem como cachos e eles a darem-me a mão amparando esses primeiros passos. Tínhamos de nos apressar. Tínhamos pouco tempo. Mas ainda bem que não sabíamos.



Quando os outros miúdos falavam dos pais, eu nada dizia. Calei e sofri sempre essa ausência. Imaginei o meu pai, mantínhamos longas conversas secretas, ele aconselhava-me, consolava-me sempre que eu sofria, era o meu amigo, acompanhava-me nos momentos difíceis. Amigo imaginário? Era isso tudo e muito mais … Mas doía muito manter este amor secreto. Doeu muito ele não estar presente a meu lado, não me poder abraçar quando tanto precisava! Não me consigo lembrar dele vivo. Só ficou aquela noite como recordação da sua passagem. E ficou a vida inteira para o recriar.

Ele existiu. Depois dexistiu. Mas para mim existiu, existe e existirá sempre como uma ausência presente. Mas como pode doer o que não existe?

1 comentário:

  1. Há ausências que são a maior presença na nossa vida.É o caso!
    Júlia:as palavras faltam na presença disto.
    Gostava eu de ser o génio da lâmpada e conferir-te esse desejo: teres tempo para gozar o tempo com ele.
    A minha amizade
    EME

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