A mulher é magra, está direita, sentada naquela secretária branca.
O que mais chama a atenção é o estar riscada de preto e branco. Riscas pretas paralelas a riscas brancas. Preto no branco. Saia preta. Olhos pretos. Nada de cinzentos.
Pega nas folhas de papel com determinação.
As riscas mexem-se, as dos braços saem do alinhamento, ficam oblíquas em relação às do peito. Afastam-se.
Pega num lápis preto e afia-o com força, com raiva. Pára. Afia outra vez. Pára. Afia mais. Gostaria de afiar assim a vida, até a tornar fina, perfeita.
Claro que partiu o bico do lápis. Também partiu a puta da vida. Foi mais uma coisa que partiu.
A sua vida está partida. O bico do lápis também. Ele também partiu. Tudo se vai partindo à sua volta. Também ela gostaria de partir. Mas para aonde?
A fúria domina-a.
Pega noutro lápis já afiado. Quem lhe dera pegar noutra vida já afinada!
Pensa, pouco, não tem tempo para pensar muito.
Escreve e risca o papel com aquele braço às riscas. Toda ela são linhas pretas e brancas em movimento. As riscas pegam no lápis e riscam, riscam, a preto, no branco do papel imaculado. Só mesmo o papel está imaculado. Sem mácula. Sem mágoa.
Amachuca o papel com raiva.
Que há-de escrever aquele imbecil que lhe amachucou a vida?
Atira com força a bola de papel para o caixote do lixo.
Pensa rápido. Esfrega o nariz.
Volta a escrever com rapidez, com fúria.
Precisa pensar. Não consegue.
O que lhe quer dizer não ganha forma, não passa para o papel.
Tenta escrever rápido, mas a mão não risca com a rapidez do pensamento.
Revolta-se com a lentidão da mão. Ou será com a rapidez do pensamento?
Que se lixe!
Faz uma bola com a folha e atira-a para o chão.
Apetece-lhe fazer o mesmo com os sentimentos que não a largam…
Tenta novamente.
Escreve e apaga com uma borracha branca.
Quem lhe dera também apagar o que aconteceu. Apagar aquela presença que ficou.
Faz o gesto de sacudir essa presença.
Escreve durante um tempo, furiosamente, afincadamente, decididamente.
Lê.
Rasga o papel ao meio e junta. Novamente ao meio e junta. Até ficarem pequenos bocadinhos. Manda-os ao ar. Caem pelo chão.
Tudo fora, tudo para fora.
Dentro fica a raiva e a impotência, duas primas direitas.
Por dentro o risco.
Por fora as riscas.
Viver é mesmo arriscado.
Vive a preto e branco.
Não tem lugar para os cinzentos.
Sofre também a preto e branco.
Mas sonha com um amanhã colorido.
"Pelo sonho é que vamos..."
Mas sonha com um amanhã colorido.
"Pelo sonho é que vamos..."
Essa atracção pelas cores devia ser analisada.Esse jogo de palavras _ risco /riscas/ riscar da vida /riscar no papel - bem jogado, bem lançado nessa escrita riscada como a fúria da água a saltar numa casacata, com pressa de não perder as palavras...ou com pressa de agarrar a imaginação?
ResponderEliminarGostei. Bjs.
Muito bem menina júlia, estou a ver que as aulas de escrita estão a fazer progressos. Gostei deste texto como aliás gosto sempre. Já és capaz de escrever sobre tudo, e bem :) Beijinhos
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