sexta-feira, 8 de abril de 2011

Preto e branco. Nada de cinzentos.


A mulher é magra, está direita, sentada naquela secretária branca.

O que mais chama a atenção é o estar riscada de preto e branco. Riscas pretas paralelas a riscas brancas. Preto no branco. Saia preta. Olhos pretos. Nada de cinzentos.

Pega nas folhas de papel com determinação.

As riscas mexem-se, as dos braços saem do alinhamento, ficam oblíquas em relação às do peito. Afastam-se.

Pega num lápis preto e afia-o com força, com raiva. Pára. Afia outra vez. Pára. Afia mais. Gostaria de afiar assim a vida, até a tornar fina, perfeita.

Claro que partiu o bico do lápis. Também partiu a puta da vida. Foi mais uma coisa que partiu.

A sua vida está partida. O bico do lápis também. Ele também partiu. Tudo se vai partindo à sua volta. Também ela gostaria de partir. Mas para aonde?

A fúria domina-a.

Pega noutro lápis já afiado. Quem lhe dera pegar noutra vida já afinada!

Pensa, pouco, não tem tempo para pensar muito.

Escreve e risca o papel com aquele braço às riscas. Toda ela são linhas pretas e brancas em movimento. As riscas pegam no lápis e riscam, riscam, a preto, no branco do papel imaculado. Só mesmo o papel está imaculado. Sem mácula. Sem mágoa.

Amachuca o papel com raiva.

Que há-de escrever aquele imbecil que lhe amachucou a vida?

Atira com força a bola de papel para o caixote do lixo.

Pensa rápido. Esfrega o nariz.

Volta a escrever com rapidez, com fúria.

Precisa pensar. Não consegue.

O que lhe quer dizer não ganha forma, não passa para o papel.

Tenta escrever rápido, mas a mão não risca com a rapidez do pensamento.

Revolta-se com a lentidão da mão. Ou será com a rapidez do pensamento?

Que se lixe!

Faz uma bola com a folha e atira-a para o chão.

Apetece-lhe fazer o mesmo com os sentimentos que não a largam…

Tenta novamente.

Escreve e apaga com uma borracha branca.

Quem lhe dera também apagar o que aconteceu. Apagar aquela presença que ficou.

Faz o gesto de sacudir essa presença.

Escreve durante um tempo, furiosamente, afincadamente, decididamente.

Lê.

Rasga o papel ao meio e junta. Novamente ao meio e junta. Até ficarem pequenos bocadinhos. Manda-os ao ar. Caem pelo chão.

Tudo fora, tudo para fora.

Dentro fica a raiva e a impotência, duas primas direitas.

Por dentro o risco.

Por fora as riscas.

Viver é mesmo arriscado.

Vive a preto e branco.

Não tem lugar para os cinzentos.

Sofre também a preto e branco.

Mas sonha com um amanhã colorido.

"Pelo sonho é que vamos..."



2 comentários:

  1. Essa atracção pelas cores devia ser analisada.Esse jogo de palavras _ risco /riscas/ riscar da vida /riscar no papel - bem jogado, bem lançado nessa escrita riscada como a fúria da água a saltar numa casacata, com pressa de não perder as palavras...ou com pressa de agarrar a imaginação?
    Gostei. Bjs.

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  2. Muito bem menina júlia, estou a ver que as aulas de escrita estão a fazer progressos. Gostei deste texto como aliás gosto sempre. Já és capaz de escrever sobre tudo, e bem :) Beijinhos

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