sexta-feira, 29 de outubro de 2010

As iludências aparudem



Aquele ar rígido era todo arestas. Negro azeviche no cabelo cortado a direito e na franja em linha recta. Tudo rectilíneo. O vestido preto direito, com decote quadrado. Miss Sterck é demais! Toda rectas.

Só o seu hábito de flores preenchidas por curvas sobrepostas até ao infinito lhe arredonda alguma coisa, e essa coisa está fora dela!

A sua personalidade é também recta, sem andar por aí às curvas. Nada de estranho se lhe pode apontar. É recta, straight, um exemplo de virtudes. Tanto rigor e linearidade irritam! Tanta perfeição direita raia a loucura!

Mas não há bela sem senão: ela tem o seu segredo, e que segredo! Esconde-o debaixo de tanta rigidez. Esconde-o tão fundo, no fundo das camadas mais fundas das profundezas do seu ser, nunca ninguém o poderá descobrir!

Não fora o seu confessor e só Deus o saberia! Mas o padre era também um poço sem fundo, o segredo iria morrer com ele…

Esta mulher tão rigidamente recta tem o hábito de, nas suas noites solitárias e sombrias (que por acaso são todas), na sua casa escura e sóbria e recatada e sem conforto, em frente ao enorme espelho que comprou propositadamente para esse fim, pôr a velha e sempre renovada música “you can leave your hat on” e, devagar e sensualmente, retirar todo aquele austero vestuário rectilíneo negro, deixando à vista aquela lingerie de renda preta que a faz sentir poderosa e pôr um chapéu negro na cabeça. E aí ela arredonda-se ao praticar a sua sessão privada de strip-tease para o homem da sua vida, só para ele, a sua grande paixão: Deus! Para que lhe serviria um homem se ela tem um Deus?

Não fora aquele padre metediço e este segredo divino ficaria entre Ele e ela!

A irmã de Miss Sterck

Adorava ser como a minha irmã mais velha: sempre tão comedida, tão composta, tão bem vestida, sempre de preto, é certo, mas isso mostra que tem muita personalidade, sabe bem o que gosta e quer. É uma mulher sem defeitos, daí qualquer comparação me deixar sempre a perder…

E aquele seu cabelo negro liso e sempre alinhado, lindo! Bem tento desfrisar este meu cabelo selvagem, mas o resultado deixa-me a léguas dela. Uma desgraça!

E aquele seu jeito inato para fazer aquelas lindas flores, que crescem através de linhas que se vão encontrando e desencontrando e tecem flores enormes! Tem a casa cheia destas flores maravilhosas, até já me ofereceu algumas no Natal ou nos meus anos. Claro que as guardo religiosamente.

Até nisso somos diferentes, religiosamente falando, ela é muito devota a Deus e eu sou a desnaturada que se sabe!

Nunca teve namorados, pelo menos, que se saiba! É muito recatada: ela é trabalho-casa, casa-trabalho. As noites, passa-as em casa. Suponho que reza muito. Podia ter sido freira… Todas as semanas se vai confessar. Nem percebo que pecados terá!

Só lhe conheço um segredo: adora beber o seu copito, às vezes mais do que um, coitada, no meio de tanta perfeição, um copito a mais até lhe dá a sua graça!



4 comentários:

  1. Mas que segredo este. As pessoas nem sempre são o que parecem. É a moral desta história maravilhosa, como só tu sabes contar. A descrição da personagem está muito interessante, e estou a ver que a cor começa a ganhar importância nas tuas personagens. Gosto. Ah e não achei o tema pesado. Se calhar sou eu que sou muito à frente eheh. Beijinhos.

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  2. Há pessoas com 2 personalidades. Muitas vexes são esquizofrénicas. Mas, tb há as pessoas que querem ser exactamente como as outras. São pessoas sem personalidade. Estas duas facetas estão muito bem descritas aqui. A sua escrita é uma escrita retratisata, própria de quem olha e vê.

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  3. Acabei de ler estes últimos dois textos, e acho que deves começar a pensar seriamente em escrever um Livro, quando escreves a tua criatividade não tem limites, essa cabeça vai rebentar se não transportares essas ideias - que pelos vistos não se esgotam - para um livrinho. Mais quantas surpresas vêm aí? J.J.

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