terça-feira, 8 de junho de 2010

A vida de um copo e de seus irmãos e da Maria também. Resumindo: a vida!




Sou um copo bem nascido. Fui criado com muito amor pelo Joaquim Ferreira, um zeloso vidreiro da Fábrica da Marinha Grande. As suas mãos morenas fizeram de mim e dos meus irmãos umas pequenas maravilhas. Foi no mês de Fevereiro daquele inverno rigoroso de 1954. Como me lembro bem do Joaquim estar com uma camisola de lã azul escura! Eu era lindo, de um azul indescritível, com o meu elegante pé alto. Lá fiquei eu alinhado com todos os meus irmãos, formando enormes fileiras azuis, onde o sol se reflectia e criava aqueles efeitos que faziam o Joaquim se sentir tão orgulhoso!

Todos seguimos para um depósito de loiça. Eu e onze irmãos fomos oferecidos como prenda de casamento a um casal, que foi viver em S. Pedro do Estoril. Ele era Engenheiro, ela pianista. Éramos tratados com todo o cuidado. Vivíamos numa cristaleira toda envidraçada, por isso a nossa beleza estava sempre em exposição. Só éramos retirados em dias de festa pela Maria, uma afeiçoada criada que viera dum lugarejo perdido lá para o Minho. Era uma criatura muito boa e, como não dispunha de liberdade nem de vida própria, vivia para e através dos Senhores e idolatrava tudo o que lhes pertencia. Éramos tratados como objectos quase sagrados pelas suas mãos estragadas mas muito cuidadosas.

Fomos tocados por todo o tipo de bocas: das mais perversas às mais amorosas e tímidas, das mais vorazes às mais discretas. E as mãos que nos seguraram: havia as das Senhoras, delicadas, que nos afagavam e apenas nos pousavam nos lábios a fingir que bebiam; havia as de homens fortes que nos levavam à boca e bebiam tudo de um trago. Por nós passaram vinhos excelentes, néctares únicos. Brindámos a muitas celebrações, partilhámos muitas alegrias e muitos amores e desamores.

Tinha sempre muito medo que me partissem quando já tinham bebido muito e me seguravam com dificuldade. Um dos meus irmãos caiu numa festa e estilhaçou-se em mil vidrinhos, depois aconteceu o mesmo a outro. Doeu muito vê-los serem simplesmente varridos e despejados no caixote. O ir para a mesa, depois ser levado para a cozinha, esperar pela minha vez para ser lavado, passado por água, escorrido e depois enxuto deixava-me sempre muito nervoso. Só descansava quando voltava para o meu lugar na prateleira ao lado dos meus irmãos. Que paz, que descanso bom até à próxima festa!

O Senhor morreu no fim dos anos noventa e nunca mais houve festas, nunca mais fomos usados. Só saíamos para as limpezas e voltávamos para a nossa triste vida, encafuados sem préstimo, lado a lado, a sentir que tínhamos literalmente sido “postos na prateleira”. Mas um ano depois a Senhora não aguentou a solidão e foi ter com o seu grande amor, lá onde já não precisavam de nós.
A Maria embrulhou-nos a todos em jornais e meteu-nos em caixas, tudo bem regado pelas suas lágrimas teimosas. E lá fomos nós para uma casa quase despida e moderna da filha Mariana, que ficava na Alta de Lisboa. Era tudo muito linhas direitas e muito minimalista. Era um mundo estranho, quase sem objectos!

Ficámos fechados num desses móveis direitos e sem qualquer enfeite, sem vermos nenhuma luz e sem que nenhum ser humano nos pudesse ver. Ficámos bem atrás, eu e os meus irmãos restantes! À nossa frente estavam os copos modernos, com linhas direitas, de design. Achava-os tão sem graça! Mas passavam a vida a entrar e a sair. Era um vai-vem desenfreado! Naquela casa havia sempre almoços e jantares e festas! E muito se bebia, pelos vistos! Os copos já não eram lavados à mão, mas postos numa máquina que os deixavam logo secos e prontos a serem arrumados. Eu morria de pavor que tal nos acontecesse. Mas não! Já nem por isso tivemos hipótese de passar! Não servíamos para nada! Éramos apenas parte da herança dos velhotes… Era um favor estarmos para ali, só a estorvar! Os novos olhavam-nos com um ar superior e gozavam com o nosso aspecto ultrapassado. E claro que nunca mais vimos a nossa querida Maria! Também ela já não devia ter préstimo. Dedicara uma vida inteira a outras vidas e acabara sem vida e sem reconhecimento, naturalmente de volta ao lugarejo que também já não se lembrava dela e a recebia por favor. Estaria naturalmente sozinha, sem raízes…

E acabámos por ir parar a uma loja de velharias de uma amiga da Dona Mariana. E para aqui estamos à espera que alguém dê alguma coisa por nós, agora que já ganhámos patine e ficaremos bem como relíquias do passado. O que fomos e no que nos tornámos. É a vida de um copo numa sociedade em constante evolução e com o culto da última novidade! Costumam dizer que velhos são os trapos. Pois eu acrescento: e os copos. A Maria acrescentaria: e as Marias! É a vida!

5 comentários:

  1. Este texto está delicioso. Adorei, como sempre. Está muito criativo. O título é bastante apelativo e no fim de se ler a história, vê-se que não podia ser outro.
    A perspectiva está muito interessante, pois na verdade é o que acontece nos nossos tempos, resultado da massificação e da modernização.

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  2. A tua imaginação não tem limites, a trajectória da "vida" de um copo está deslumbrante, está bem contada, e no fim chegamos a ter pena do...copo. "É A VIDA". j.j.

    PS. E que tal entrares na "pele" da nossa LUA.Fica o desafio.J.J.

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  3. Por este caminho a menina ainda vai dar em escritora e em pintora. Quanto aos copos modernos não tenho nada contra, nem quanto aos móveis de linhas direitas. O problema não é a substituição do novo pelo antigo, usado, o problema é a desvalorização só por ser antigo ou velho! O que na sociedade actual parece-me até que as coisa não estão assim tão mal. Quer se trate de peças "úteis" como de peças artísticas. Quanto ao resto e em geral é como lhe disse ainda se arrisca a dar em escritora! E agora por antigos. Um grande escritor não sei se o Saramago até dizia: leiam os Clássicos pois é lá que está a essência, o que resiste ao tempo!
    Bexiga

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  4. Coincidência, hoje após o Telejornal, houve precisamente uma reportagem sobre a Fábrica da Marinha Grande, onde muitos ex-funcionários partilharam e relataram tudo o que de bom aprenderam, o empenho e zelo de todos eles, e depois o choque e tristeza quando souberam que a Fábrica ia fechar as portas....Emocionante! Seguiram diferentes caminhos, poucos com êxito... Joaquim Ferreira conheceu lá a sua namorada, esposa, e trabalharam lá juntos longos anos! A fábrica era a sua segunda casa, onde estava com a família e com os amigos. Alguns começaram a trabalhar na fábrica com 13 anos...como aprendizes.. E tal como diz o Sr. Joaquim Ferreira, estão sempre a aprender. Nada é repetitivo, todas as peças são diferentes, aprende-se todos os dia. Grande reportagem!

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